quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

não é simples, não é uma história

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Cinco perguntas para Péter Esterházy:

Você disse estar tentando escrever uma história simples e que na sua escrivaninha há um bilhete: “história simples, 100 páginas”. Quão simples é escrever uma história simples de cem páginas?

É complicado. Geralmente, o que escrevo: 1) não é simples; 2) não é uma história; 3) não tem cem páginas. Mas acho que todo escritor de prosa deseja contar uma história do início ao fim. Como se estivesse contando ao seu próprio fillho. Quando uma pessoa escreve livros há muito tempo, sempre acaba tentando escrever o que ainda não conseguiu. Mas não conseguimos escrever o que não conseguimos escrever. Só conseguimos escrever o que conseguimos escrever. Não importam os esforços. Os meus livros são assim: quero contar uma história e acabo não conseguindo. As críticas dizem que esse é o meu estilo. O que me faz pensar que o estilo de um escritor se relaciona mais com o que ele não sabe do que com o que sabe.

Os verbos auxiliares do coração é um romance sobre um filho diante da doença terminal e da morte da mãe. Mas também sobre como encontrar as palavras para descrever a experiência da perda (“incompreensível e não compartilhável”). Gostaria que falasse um pouco sobre esse aspecto da linguagem, seus limites.

A morte da mãe é algo desesperador. Desde meus vinte e cinco anos, passo cerca de dez horas por dia na escrivaninha. Por causa disso, tive dores no ciático. Chegou a doer tanto que precisei operar. Antes de ser operado, fiquei deitado numa cama. Quando virava para um lado, doía. Se me virava para o outro, era terrível. E mesmo que eu não virasse para nenhum dos lados, sentia dor. Com esse livro foi a mesma coisa. É incômodo quando alguém fala da morte da mãe. Mas silenciar também é ruim. Então escrever não foi uma solução. Não é verdade que escrever ajude em algo. Eu não escrevi sobre a morte dela para me ajudar. Mesmo se o escritor estiver triste depois da morte da mãe, os seus sentimentos não importam. Só tem importância se eu, como escritor, conseguir colocar uma palavra ao lado da outra e criar a sensação de que estou triste. Ou fazer com que o leitor pense na sua própria mãe, ou que se lembre dela, caso ela também tenha morrido. Seria mais fácil expressar a minha relação com a literatura se eu tivesse escrito esse livro com a minha mãe viva. Mas eu não teria sido capaz de escrever esse livro, nesse caso. Teria muitas vantagens se ela não tivesse morrido. Como, por exemplo, contar a ela sobre um possível sucesso do livro. Um escritor só deveria fazer sucesso enquanto sua mãe está viva. São as mães que ficam mais felizes com o sucesso dos filhos. Mas esse livro é um trabalho em conjunto com a minha mãe. Ela morreu em 1980, mas dois ou três anos antes ela já estava mal. Não foi a doença o maior problema, mas o fato de que não havia mais nada o que fazer a respeito dela. Como acontece às pessoas idosas, ela ficava sentada no sofá e chorava. Eu colocaria entre parênteses que era muito triste vê-la chorar. Ela era uma sonhadora muito talentosa: tinha talento para sonhar. De uma maneira muito viva, ela se lembrava dos sonhos pela manhã. Então eu disse a ela que escrevesse, a cada manhã, o que havia sonhado na noite anterior. Eram sonhos bonitos, irreais, bastante poéticos. Pensei que poderia usá-los de alguma forma nos meus livros. Eu disse a ela: “Mãe, você anota seus sonhos, eu escrevo e ficaremos ricos!”. Ela tinha um caderno retangular e passava os dias anotando. Foi complicado, no início. Ela incluía comentários sobre os sonhos. Pedi a ela que descrevesse apenas o que sonhava. Então, ela morreu. E quando comecei a escrever esse livro, reescrevi os sonhos dela. O título do livro (Os verbos auxiliares do coração) responde um pouco a sua pergunta. Não existem verbos auxiliares em húngaro. O título mostra a impossibilidade de expressar os sentimentos relacionados à morte – o “coração” do título diz respeito a esses sentimentos. Não diria que esses sentimentos são do autor, mas do texto. E se espera que os sentimentos venham também da parte do leitor. Por enquanto não tenho nada além das palavras. Mais especificamente, as palavras húngaras. Elas representam todo o meu valor, são tudo o que eu tenho. Eu construo tudo com essas palavras: meus sentimentos, minha mãe, meu pai, a morte da minha mãe. No fim, só existe o que eu construí com essas palavras.

Ao longo do livro, há citações de uma série de livros e autores, muitas delas escondidas no texto. Há referências a um conto de Borges, “O Aleph”, em especial. Qual a importância deste conto para o livro e qual a sua relação com as histórias de Borges?

Quando você encontra um trecho ou uma citação de outro escritor no meu livro, isso deveria significar que esse escritor é importante para mim. Mas os meus pontos de vista são menos sérios e mais brincalhões. Por exemplo: no texto do Borges, o que mais me chamou a atenção foi o nome da personagem, Beatriz Viterbo. Claro que o meu encontro com Borges não é uma coincidência. Ele cria situações absurdas que demonstram os paradoxos da escrita. E fala com precisão sobre isso. Borges também trata da incerteza da realidade. Existe alguma realidade para além das palavras, ou é real apenas o que as palavras descrevem? Talvez, a importância de Borges para mim se meça por ser algo tão diferente da literatura tradicional húngara. De fato, eu encontro tudo o que preciso na literatura húngara. Mas é sempre bom ver outras realidades, reflexos completamente diferentes, outras tradições de força. Ao ler outras literaturas, a diferença é apresentada. A tradição do romance húngaro é muito pobre. Há grandes escritores, mas não possui romances que influenciaram a literatura europeia. E isso não se explica com o argumento escolhido pelos húngaros, o de que nossa língua é tão diferente e especial a ponto de criar limitações para a escrita. Isso quer dizer que um romancista contemporâneo húngaro não tem uma base firme sob os pés. É como se ele estivesse em pé, no ar. E estar em pé, no ar, é uma situação interessante, claro. Dessa posição, teoricamente, conseguiríamos escrever romances muito interessantes. Também poderia ser interessante ser um escritor russo, mesmo que fosse preciso desviar sempre de Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói etc. O que me deixaria com a cara inchada, por viver esbarrarando em escritores por toda parte. Sobre Borges, para mim, é como se ele tivesse vindo da lua. É interessante e podemos aprender muito com ele.

Você escreveu sobre uma mãe em Os verbos auxiliares do coração e sobre um pai em Harmonias celestes -- e ambos têm relação com seu pai e sua mãe. Queria que falasse sobre como a autobiografia está presente nos seus livros.

Você pode considerar a autobiografia como uma coisa confiável. Mas eu uso a autobiografia como objeto da imaginação, para construir fantasias. Não faço distinção entre biografia e autobiografia. Muito menos entre ficção e não-ficção. Por exemplo, em um livro trato de uma irmã mais nova. Certa vez, um leitor disse, de forma impertinente: “Sei muito bem que você não tem uma irmã!”. Então confessei que realmente não tinha. Porque eu também brinco com a autobiografia. Às vezes tento fazer com que os meus leitores pensem que o livro é muito autobiográfico. Costuma-se dizer que o escritor deve manter uma distância entre ele e o seu objeto. Eu anulo essa distância. O que é o mesmo que infinito. Se não existe uma distância, então essa distância pode ser de qualquer tamanho. Quando escrevo, nunca penso que se trata de mim. Se revelo alguma intimidade desse “eu”, nunca penso que se trate da minha intimidade. Se fosse assim, Paulo Schiller, o tradutor do meu livro, não seria um tradutor, mas sim um psiquiatra. É provável que ele tenha opiniões diferentes e me condene. Pode ser que ele tenha razão. Pode ser que o que eu digo seja uma forma de autodefesa. Algo que eu não tenho consciência. Para falar de uma forma mais convencida, diria que isso se chama talento. Por isso dizia que seria fácil entender a minha relação com a literatura se a minha mãe ainda estivesse viva. Porque assim ninguém pensaria que escrevi esse livro para mim, mas para a minha mãe. Claro que eu escrevi esse livro apenas para a minha mãe. Mas um escritor não precisa ser consequente. Um matemático sim deve ser consequente. Eu estudei matemática, mas tive uma formação terrível em matemática.

Desde que começou a publicar, em 1976, você já escreveu mais de trinta livros. Como é o seu dia-a-dia, seu ritmo de trabalho?

Eu trabalho como um burocrata. Sento na mesa às 9h da manhã e fico até não aguentar mais. Isso vai até umas 14h ou 15h. Então vou comer e depois fico querendo sentar novamente à mesa, mas nem sempre consigo. Teria uma boa vida se conseguisse terminar o trabalho até às 14h, mas não consigo. A característica desse trabalho é não poder adiar para o dia seguinte. Se não termino o trabalho do dia, o que segue também estará perdido, porque não poderei trabalhar sobre o que já teria feito. Quando era jovem, imaginava que a minha vida seria tranquila. Isso porque eu pensava em trabalhar muito, até às 14h, e depois, pela tarde e à noite, encontraria os amigos em restaurantes. Gosto muito de restaurantes. Hoje vamos comer num bom restaurante, né? [risos] Mas sempre trabalho até tarde, e depois disso já não quero ver ninguém. Então a escrita me torna menos simpático. Poderia dizer também que a escrita devora a minha vida. Ao anoitecer, já não resta muito de mim. Meus dias passam assim. E o problema é que eu gosto disso. O que mais gosto de fazer é sentar na minha mesa e pensar bobagens. Por exemplo, se escrevo duas páginas por dia, no dia seguinte leio estas páginas e vejo que estão mal escritas. Com o trabalho de um dia, elimino essas duas páginas. Eliminar é um trabalho tão difícil quanto escrever. Então isso significaria dois dias cheios de trabalho. Mas o resultado de páginas é: zero. Não é tão agradável passar por esses dois dias com frequência. E também acontece que num dia o escritor pode ser muito talentoso. E no dia seguinte pode não ser. Tenho colegas que, ao não conseguirem escrever, tiram férias ou procuram dançarinas à noite. Ainda não experimentei essa estratégia, porque preciso trabalhar mesmo quando estou trabalhando mal. Trabalhar mal tem suas vantagens. De alguma forma, é necessário que o escritor, durante o seu trabalho, saiba desviar dos obstáculos. O que já é um exercício intelectual. Mais tarde, esse desvio será útil, porque vai assegurar uma nova opção de caminho. Não há como escapar do trabalho. Não conheço nenhum escritor que tenha se tornado um grande escritor sem ter trabalhado muito. Mas disso não podemos tirar a conclusão de que um sujeito que trabalha muito será um bom escritor. Há muitas maneiras de escrever livros ruins. Também é verdade que as pessoas não devem usar o seu talento, mas fazer algo a respeito da falta de talento. E não é verdade que na pessoa de muito talento a falta de talento seja menor. Com o grande talento, vem também a grande falta de talento.
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domingo, 27 de novembro de 2011

chora, homenzinho

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"Como tantas outras vezes, coube a Homero jogar a primeira pedra. Penso num verso muitas vezes repetido da Odisseia: "E contemplava em lágrimas o grande deserto do mar" (Odisseia V, 84). Ele se refere ao episódio no qual o herói é novamente retido numa ilha, prisioneiro de uma mulher tomada de amores (no caso, a ninfa Calipso). Traduzido literalmente, o verso diz: "Para o mar, o infecundo, olhando, enquanto as lágrimas lhe escorriam". Homero opera aqui uma subtração de líquidos. A umidade menor, o véu de lágrimas, é cercada, reabsorvida sumariamente — para não dizer sorvida — pela umidade maior, o mar salgado. O próprio mar não se manifesta, mas adivinhamos o que ele diria, se pudesse falar: chora, homenzinho, chora até cansar; logo mais sorverei todo esse grão de umidade que te faz quem és. Entre os incontáveis momentos monológicos que fazem avançar a epopeia, este é um dos mais solitários e comoventes. E a formulação deve ter parecido certeira também para o poeta, que a repete várias vezes. Ela é a rima secreta e recorrente de todas as aventuras que a Odisseia relata. Pois estas não são mais que as tribulações de um homem a quem Poseidon aplica sempre uma nova peça: uma parábola da vida, com muitos momentos de comédia, em torno das frustrações e dos reveses do herói desafortunado. Mas é a inclemência da natureza, na figura do mar sem fim — à primeira vista, mero instrumento dos deuses, mas na verdade um elemento de ânimo próprio —, que confere traços trágicos ao relato das viagens de Odisseu. Pois não há astúcia que o livre do fato de que o homem também é feito de água, de um agregado de líquidos que põem seu corpo à mercê dos ciclos naturais. São as seivas vitais que desestabilizam sua psique e perturbam a economia dos sentimentos — sangue, suor e lágrimas, para dizê-lo com concisão. Por isso, a comparação entre mar e deserto traduz o essencial: de um lado e de outro, o elemento infecundo. Decisiva, aqui, é a desproporção: de um lado, o oceano, a grande reserva de cloreto de sódio do planeta; de outro, os borrifos de água e de sal nos olhos de um homem solitário, que chora à beira-mar."

Durs Grünbein, "As lágrimas de Odisseu", The bars of Atlantis, 2009.

(Tradução Samuel Titan Jr.)
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domingo, 6 de novembro de 2011

lições do morto-vivo

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Texto de orelha que escrevi para A página assombrada por fantasmas, livro de contos do Antonio Xerxenesky.

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Na primeira destas nove histórias, na cena inicial, um sujeito lê um livro. Ainda não sabemos, mas essa imagem, essa réplica em escala reduzida do leitor real, prefigura um tema: são as leituras, e sobretudo as maneiras de ler, que fazem avançar os contos de A página assombrada por fantasmas, terceiro livro de Antonio Xerxenesky. Os fantasmas, como geralmente acontece, são uma disposição — podemos enxergá-los ou não. Com a ficção (e a realidade), acontece algo parecido: o sentido não depende apenas de quem escreve, mas também de como se lê. E essa talvez tenha sido a grande lição de Borges, o morto-vivo mór das letras argentinas, que aparece e desaparece a todo momento nas páginas deste livro.

São as leituras que conduzem o narrador nada confiável de “Esse maldito sotaque russo”. O conto é a história de um investigador cuja especialidade é encontrar escritores reclusos e desaparecidos. Numa trama sórdida (e aqui é impossível dizer "sórdida" sem dizer paródica), que envolve o escritor norte-americano Thomas Pynchon e seu tradutor brasileiro, uma tenista sensual e litros e mais litros de vodka, o tal detetive consegue interceptar um original do autor de Against the day, que será, ao mesmo tempo, lido como obra “brilhante” e “lixo ilegível”. E o que sabemos de um texto antes de ler vai se mostrar tão ou mais importante do que o texto propriamente dito.

Nas histórias de Xerxenesky, como em certo ramo da narrativa contemporânea (Bolaño, Vila-Matas), o real é perturbado e contaminado pela ficção. Em “Amanhã, quando acordar”, um jovem casal vai passar o ano-novo no litoral gaúcho, e a leitura das primeiras linhas de um livro de Javier Marías parece desencadear uma situação terrível. “A morta-viva” coloca em cena um sujeito que conhece uma garota na fila de um cinema em Buenos Aires. Os dois começam a sair, e depois de um ou dois encontros e alguns indícios (um ex-namorado chamado Rímini, doze ligações não atendidas no celular), ele passa a desconfiar, e ter certeza!, de que ela é a obsessiva e pegajosa Sofia, personagem de Alan Pauls em O passado. O protagonista de “A breve história de Charles Mankuavic”, por sua vez, abandona a literatura ao descobrir uma nova e assombrosa forma de ler sua própria obra.

A paranoia deflagrada pela leitura — que no conto “Sequestrando Cervantes” ganha ares de complô e ficção científica — é uma das maneiras de ler as histórias deste livro. Mas existem outras. Trata-se também de textos que homenageiam e ironizam os gêneros. E de um mundo cujas promessas de aventura se cumprem exclusivamente nos livros ou a partir deles. E de um jovem escritor de Porto Alegre. E de planos de fuga — através da ficção.
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sábado, 15 de outubro de 2011

sábado à noite

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Peter Hujar, The World Trade Center at Night, 1976; New York Downtown at Night, 1976; Candy Darling on Her Deathbed, 1974; New York, 1976.
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terça-feira, 27 de setembro de 2011

nunca se deixe fotografar rindo

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Dois trechos de Reflexos e sombras, livro de memórias de Saul Steinberg:

1

"O ofício de cartunista é difícil, sobretudo porque é preciso ser editor de si mesmo: cortar, cortar, cortar. Uma pintura, uma colagem de desenhos a lápis, uma paisagem — tudo isso eu faço com prazer e facilidade. São delícias em comparação com a tortura de encontrar uma ideia e representá-la em seguida do modo menos pessoal possível, porque de outro modo se prejudicaria a clareza da ideia. Pela manhã, pego o caderno e a lapiseira e começo a desenhar. O que fazer? O que farei? Me sinto perdido, as ideias parecem finitas. Mas depois não é bem assim [...].

O mais difícil é cortar rápido um bom número de coisas. Outras vezes, o computador da mente deve fazer um elemento vertical percorrer todas as linhas horizontais das possibilidades. Mas, sobretudo, preciso ser capaz de associar as ideias das maneiras mais imprevisíveis.
Encontrada a ideia, ou melhor, o veio, a direção, sinto que, curiosamente, ela não é nova para mim. Como quando se escava um sítio arqueológico, acabo por encontrar alguma coisa que com certeza devia estar ali e que fazia parte, como fragmento, de alguma outra coisa que eu já conhecia. Ou seja: encontrei apenas alguma coisa de que tinha me esquecido momentaneamente. Às vezes, acho que entendi tudo, e poucos minutos depois me surpreendo ao me dar conta de que não entendi nada, não me lembro mais do que tinha afinal entendido. Compreendemos por meio de uma emoção. Fiquei felicíssimo quando, pela primeira vez, entendi que entendia. Difícil explicar melhor: entender que entendera, entender que a coisa é possível, entender que, mesmo estando perdida por ora, não está perdida para sempre."

2

"Nunca se deixe fotografar rindo ou sorrindo, Barnett Newman me disse uma vez. Se quiserem fotografá-lo, vista-se bem, mostre sua face mais agradável, mas sem sorriso, um rosto sério, plácido mesmo, porque está em jogo a dignidade do ofício, a dignidade de ser pintor, artista. Os fotógrafos tentam torná-lo normal, um entre outros, para poder dizer: 'O que ele tem que nós não temos? Qualquer um pode fazer o que ele faz'."
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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

história do cabelo

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Passei o último mês cercado por 1) expressões do tipo: "selva de cabelo", "juba de eletrocutado", "molotov capilar"; 2) produtos como o: Regenerador de Cabelo com Baba de Caracol; 3) salões de nome majestoso, com destaque para: Stilo Stella, Coca Peinados, Voilà, Vivian de Lyon; 4) e toneladas de: tintura, escova, pente, gel, gomalina, rede, bobe, grampos, alisamento quente, xampu, loção, tesoura, implante, peruca e água oxigenada. Tudo graças a um romance que editei, li e reli, História do cabelo, do argentino Alan Pauls. É a SAGA de um sujeito obcecado por cabelo. Enquanto entra e sai dos salões — em busca do seu Santo Graal: o corte perfeito —, tudo a sua volta passa pelo cabelo; desde a infância, namoradas, amigos, seu casamento, tudo. 

Gosto das frases longas, o narrador em terceira pessoa, distanciado, mas ao mesmo tempo tão próximo deste protagonista que vaga feito um fantasma por Buenos Aires, refém de seu "probleminha", a obsessão com as coisas do cabelo. E gosto especialmente quando Celso, o genial cabeleireiro paraguaio, entra em cena. Celso corta o cabelo do protagonista, que segue desconfiado: "É a lei pérfida mas fatal do corte, que — como toda droga — põe em primeiro plano um de seus efeitos, o efeito imediato, 'bom', e faz com que passe despercebido o outro, o efeito tempo, que previsivelmente nunca traz senão deterioração, tristeza, decadência." Mas, ao se despedir do cliente, Celso diz: "Nos vemos em um mês". E isso tem um efeito de laquê no cérebro do protagonista de Pauls: 

"Dez minutos mais tarde, enquanto atravessa a cidade como se estivesse sedado, com as pálpebras pesadas, ele se toca: é a primeira vez que um cabeleireiro lhe revela o horizonte de vida de um corte. Nenhum corte é eterno. Celso, pensa, é o primeiro que corta no tempo, ao contrário dos outros, que apostam tudo no ato de cortar e ficam cegos perante a única coisa que não deveriam perder de vista: a vida do corte, esse futuro sem o qual não é nada. [...] Quarenta e oito horas mais tarde, intervalo mais do que suficiente para que o trabalho que lhe fizeram mostre a que veio, se é que veio, e o decepcione de uma vez, o corte não só continua vivo e viçoso como melhora. [...] Celso é um gênio. O tempo, o travesseiro, o despertar, a ducha, a toalha, a oleosidade, a luz, os espelhos, o cabelo dos outros, o vento, a vida no mundo: não há prova que o corte não tenha superado, e superou todas elas sem o menor esforço, com uma folga aristocrática". 

Abaixo, mais um trecho e a maior capa de todos os tempos.
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“[...] ter cabelo é uma condenação porque é ter a possibilidade de perdê-lo, é uma condenação atroz porque, assim que descobre que pode perdê-lo, quem tem cabelo sabe que deixou de ser inocente, sabe que daí até a sua morte, na melhor das hipóteses, ou até que seu cabelo comece a cair, na pior, está fadado a um calvário perfeitamente estéril: conjurar o perigo cuidando do cabelo. E isso não é nada. Porque a essa atrocidade perpétua se soma outra: também a evidência de que ter cabelo é ter de cortá-lo, e que cortá-lo é exatamente o contrário de perdê-lo, porque só se perde o cabelo uma vez e para sempre, de maneira defnitiva, como se fica de cabelos brancos da noite para o dia em decorrência de um trauma ou de um golpe de terror, ao passo que um corte é apenas o ponto de partida de uma série, a primeira de um infinito rastilho de repetições, porque se cada corte é único, fruto de um conjunto complexo de variáveis, o estado em que o cabelo chega ao corte, o pedido exato de quem vai cortá-lo, o cabeleireiro a quem se confia seu cabelo, o ponto em que está nesse momento a técnica do ofício de cabeleireiro, as ferramentas utilizadas no corte, o nível de estresse ou de calma que impera no salão no momento do corte – todos se parecem, todos são de algum modo um único, um mesmo corte e ninguém, nunca, dá nem dará a quem corta o cabelo o que ele realmente quer. Não é o mal nem o bem; é o fantasma, a besta negra, o demônio da irregularidade que se apossa de seu corpo. Aprende basicamente que não há cabeleireiro que corte duas vezes do mesmo jeito. No seu caso, ou porque não consegue pedir o que quer duas vezes da mesma forma, ou porque o cabeleireiro nunca entende o pedido do mesmo jeito ou porque – mesmo que o corte seja o mesmo, o cabelo, flagrado em determinada fase de crescimento, diferente, quase com certeza, em minutos, horas ou dias da fase em que foi cortado pela última vez – acaba por interpretá-lo e modulá-lo de maneira diferente, quase sempre desviando-o de seu sentido original. Aprende a dor da insatisfação, esse misto tortuoso de tédio, fome e insônia que leva muitos dos que chafurdam com ele naquela época a botar uma arma na cintura, a se infiltrar no vestiário de um clube para roubar carteiras e porta-documentos alheios ou aproveitar a casa de uma avó permissiva para desdobrar mapas de unidades militares sobre as toalhas de macramê. A insatisfação: que não cortem bem o seu cabelo, que cortem bem mas que o efeito só dure alguns dias, que aquele corte fantástico que ilustra a foto da revista que ele leva como modelo não se afine com o seu cabelo, ou não combine com o seu rosto, ou se afine e combine mas o transforme numa estúpida cara de foto de revista.”

Mais aqui.
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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

lembro apenas da mulher que encontrei por acaso

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"Once I pass’d through a populous city, imprinting my brain, for future use, with its shows, architecture, customs, and traditions;
Yet now, of all that city, I remember only a woman I casually met there, who detain’d me for love of me;
Day by day and night by night we were together,—All else has long been forgotten by me;
I remember, I say, only that woman who passionately clung to me;
Again we wander—we love—we separate again;
Again she holds me by the hand—I must not go!
I see her close beside me, with silent lips, sad and tremulous."

Mais Leaves of grass, Whitman
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terça-feira, 30 de agosto de 2011

como se alguém pudesse saber alguma coisa

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"When I read the book, the biography famous,
And is this, then, (said I) what the author calls a man’s life?
And so will some one, when I am dead and gone, write my life?
(As if any man really knew aught of my life;
Why, even I myself, I often think, know little or nothing of my real life;
Only a few hints—a few diffused, faint clues and indirections,
I seek, for my own use, to trace out here.)"

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domingo, 21 de agosto de 2011

garotas de harvard

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"Enquanto troto vagarosamente ao longo do rio Charles, alunas de Harvard parecendo calouras passam por mim. A maioria dessas garotas é pequena, magra, usa um traje bordô com o símbolo de Harvard, cabelo loiro preso num rabo de cavalo e iPods novos em folha, e correm como o vento. Pode-se definitivamente sentir uma espécie de ar desafiador e agressivo emanando delas. [...] Todas parecem muito cheias de vida, saudáveis, atraentes e sérias, transbordando autoconfiança. Com suas passadas largas e movimentos enérgicos é fácil perceber que são típicas corredoras de média distância. Estão mentalmente talhadas para corridas breves em alta velocidade. Comparado a elas, estou bem acostumado a perder. Há um monte de coisas neste mundo muito além do meu alcance, um monte de oponentes que nunca poderei vencer. Esses pensamentos passam pela minha cabeça conforme observo seus orgulhosos rabos de cavalo balançando de um lado para outro, suas passadas agressivas. [...] Será que já tive dias tão luminosos assim na minha vida? Talvez alguns. Mas mesmo que tivesse tido um rabo de cavalo, duvido que balançaria tão orgulhosamente. E minhas pernas não teriam golpeado o chão com movimentos tão destros e vigorosos como as delas. É maravilhoso observá-las correndo. Elas têm seu próprio ritmo, seu próprio senso de tempo. E eu tenho meu próprio ritmo, meu próprio senso de tempo. Os dois são completamente diferentes, mas é assim que deve ser."

Haruki Murakami, Do que eu falo quando falo de corrida, 2007
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terça-feira, 26 de julho de 2011

dois vídeos com mulheres (e sonho)

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Muta, Lucrecia Martel, 2011

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"She wants", Metronomy, 2011

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segunda-feira, 4 de julho de 2011

suéter vermelho vivo, calça rasgada na coxa

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"[...] Eu próprio, até essa data, passara anos sem usar terno, apresentando-me até então sempre de calça e suéter; mesmo ao teatro, quando ia, ia apenas de calça e suéter, de preferência uma calça cinza de lã e um suéter vermelho vivo de lã de ovelha, tricotado com pontos grossos, que um americano bem-humorado me dera de presente logo depois da guerra. Nesses trajes, lembro-me bem, viajei algumas vezes para Veneza e fui ao célebre Teatro La Fenice, numa dessas ocasiões a uma encenação do Tancredi de Monteverdi dirigida por Vittorio Gui, mas estive também com a mesma calça e o mesmo suéter em Roma, Palermo, Taormina, Florença e em quase todas as capitais europeias, à parte o fato de que essas eram as peças de roupa que quase sempre usava em casa também, e quanto mais gastos a calça e o suéter, mais eu gostava de vesti-los, durante anos a fio as pessoas me conheceram naquela calça e naquele suéter, e ainda hoje os amigos antigos me perguntam pela calça e pelo suéter, os mesmos que uso há mais de vinte e cinco anos."

Thomas Bernhard, "O prêmio Grillparzer", trecho de Meus prêmios, 2010

"Queridas calças, agora /rasgadas nas coxas /(dois rasgos horizontais /do uso intenso) /creio não mais precisar /de seus serviços, portanto /as aposento e agradeço. /Mas não sem antes cantar /a alegria que foi andar /por vocês vestida /e a sorte de não precisar /usar vestidos. /Com vocês passeei /por Lisboa, Madri e /Paris; sentei /nos jardins do palácio /em Fontainebleau. /O tecido macio /e generoso, que suportou /meu aumento de peso, /esgarçou pouco /no início, mas só /em dois anos cedeu. /O corte me permitiu /fazer poses de balé /nos jardins do palácio. /A cor, entre o verde /e o marrom, /disfarçava sujeiras. /Nos seus bolsos /guardei poemas, /recibos de supermercado, /tickets do metrô. /Perfeitas para /pernas e passeios, /descansem. /Tive outras calças, /mas vocês foram /as preferidas.

Angélica Freitas, "Para as minhas calças", 2009
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terça-feira, 31 de maio de 2011

uma despedida

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"Heinrich e Shilinski se foram. Um aperto de mão e um adeus. Partiram. É bem provável que eu nunca mais os veja. Como são breves as despedidas. Quer-se dizer alguma coisa, mas, bem na hora, se esquece o apropriado a dizer e não se diz nada, ou se diz alguma idiotice. Despedir-se é horroroso, para quem parte e para quem fica. Momentos assim sacodem a vida humana, e sentimos vividamente o nada que somos. Despedidas rápidas são desconsideradas; despedidas longas, insuportáveis. Que fazer?"

Robert Walser, Jakob Von Gunten (tradução Sergio Tellaroli)
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segunda-feira, 16 de maio de 2011

niagara / mississippi

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Alec Soth, Niagara, 2005 ("Falls 8" e "Heart")

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Alec Soth, Sleeping by the Mississippi, 2002 ("Helena" e "New Orleans")
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domingo, 3 de abril de 2011

I don't like to look at myself

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Werner Herzog, em entrevista na GQ:

WH: I don't like to look at myself.

GQ: Why?

WH: I've always been suspicious. I don't even look into my face. I shaved this morning, and I look at my cheeks so that I don't cut myself, but I don't even want to know the color of my eyes. I think psychology and self-reflection is one of the major catastrophes of the twentieth century. A major, major mistake. And it's only one of the mistakes of the twentieth century, which makes me think that the twentieth century in its entirety was a mistake.

GQ: What's the mistake with psychology and self-reflection?

WH: There's something profoundly wrong—as wrong as the Spanish Inquisition was. The Spanish Inquisition had one goal, to eradicate all traces of Muslim faith on the soil of Spain, and hence you had to confess and proclaim the innermost deepest nature of your faith to the commission. And almost as a parallel event, explaining and scrutinizing the human soul, into all its niches and crooks and abysses and dark corners, is not doing good to humans. We have to have our dark corners and the unexplained.

We will become uninhabitable in a way an apartment will become uninhabitable if you illuminate every single dark corner and under the table and wherever—you cannot live in a house like this anymore. And you cannot live with a person anymore—let's say in a marriage or a deep friendship—if everything is illuminated, explained, and put out on the table. There is something profoundly wrong. It's a mistake. It's a fundamentally wrong approach toward human beings.

GQ: And so if humans persist in this way...?

WH: They persist in stupidity, then.

GQ: And what will the consequence be?

WH: For example, for me, I could never ever be with a woman who is three times a week with a psychiatrist. It's like an iron curtain between us.

Like venetian blinds rattling down.
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segunda-feira, 28 de março de 2011

emilia e julio, julia e emilio

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Traduzi um trecho do Bonsái, de Alejandro Zambra. E, traduzida pelo Paulo Werneck, uma das entradas dos diários do Ricardo Piglia.
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"A primeira mentira que Julio contou a Emilia foi que tinha lido Marcel Proust. Não costumava mentir sobre suas leituras, mas naquela segunda noite, quando os dois sabiam que alguma coisa estava começando entre eles, e que essa coisa, durasse o que durasse, ia ser importante, naquela noite Julio impostou a voz e fingiu intimidade, e disse que sim, que tinha lido Proust, aos dezessete anos, num verão, em Quintero. Naquela época ninguém mais passava as férias em Quintero, nem sequer os pais de Julio, que tinham se conhecido na praia de El Durazno, iam a Quintero, um bonito balneário mas agora invadido pelo lúmpen, onde Julio, aos dezessete, conseguiu a casa de seus avós para se trancar e ler Em busca do tempo perdido. Era mentira, claro: ele tinha ido a Quintero naquele verão, e tinha lido muito, mas Jack Kerouac, Heinrich Böll, Vladimir Nabokov, Truman Capote e Enrique Lihn, não Marcel Proust.

Naquela mesma noite, Emilia mentiu a Julio pela primeira vez, e a mentira foi, também, que tinha lido Marcel Proust. No começo, ela se limitou a concordar: Eu também li Proust. Mas logo houve um grande silêncio, que não era um silêncio incômodo, mas apreensivo, de maneira que precisou completar a história: Foi no ano passado, não faz muito tempo, levei uns cinco meses, andava atarefada, você sabe, com os trabalhos da faculdade. Mas me propus a ler os sete tomos e a verdade é que esses foram os meses mais importantes da minha vida de leitora.

Usou essa expressão: minha vida de leitora, disse que aqueles haviam sido, sem dúvida, os meses mais importantes da sua vida de leitora.

Em todo caso, na história de Emilia e Julio há mais omissões que mentiras, e menos omissões que verdades, dessas verdades que são chamadas de absolutas e que costumam ser incômodas. Com o tempo, que não foi muito mas o bastante, trocaram confidências sobre seus desejos e aspirações mais íntimos, seus sentimentos desmedidos, suas breves e exageradas vidas. Julio confiou a Emilia assuntos que só o psicólogo de Julio saberia, e Emilia, por sua vez, converteu Julio numa espécie de cúmplice retroativo de cada uma das decisões que havia tomado ao longo da vida. Aquela vez, por exemplo, quando decidiu que odiava sua mãe, aos catorze anos: Julio a escutou atentamente e opinou que sim, que Emilia, aos catorze anos, estava certa, que não havia outra decisão possível, que ele teria feito o mesmo e, claro, se então, aos catorze, eles já estivessem juntos, ele com certeza a teria apoiado.

A relação de Emilia e Julio foi cheia de verdades, de revelações íntimas que rapidamente estabeleceram uma cumplicidade que eles quiseram entender como definitiva. Esta é, então, uma história leve que se torna pesada. Esta é a história de dois estudantes devotados à verdade, a dizer frases que parecem verdadeiras, a fumar cigarros eternos, e a se fechar na violenta complacência dos que se creem melhores, mais puros que o resto, que esse grupo imenso e desprezível que chamam de o resto.

Rapidamente aprenderam a ler os mesmos livros, a pensar parecido e a disfarçar as diferenças. Logo moldaram uma vaidosa intimidade. Ao menos naquela época, Julio e Emilia conseguiram se fundir numa espécie de vulto. Em resumo, foram felizes. Disso não resta dúvida."

(Bonsái, Alejandro Zambra, 2006)
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"Foi ao vernissage de uma exposição de León Ferrari no Filo e, quando estava de saída, encontrou Miguel, amigo da vida inteira, e com ele ficou. Começaram a beber em diferentes bares e, primeiro Julia, depois a menina que estava com Miguel, os deixaram sós. Os dois eram -- ou foram -- bons escritores, mas pararam de publicar, e as lembranças da juventude ajudavam a seguir adiante.

Mal-entendidos, piadas sangrentas, referências equívocas. Conversas errantes, difíceis de transmitir: torcidas pela dupla temporalidade da ironia, por sua captação diferida. Acabaram ao amanhecer num dos únicos bares abertos, atrás do cemitério da Recoleta, e despediram-se como se nunca mais fossem se encontrar.

Emilio voltou a seu apartamento, Julia não estava lá, tinha ficado farta daquelas histórias de bêbados. Sentia-se enjoado, insone; buscou uma garrafa de água na geladeira; depois desceu para comprar cigarros e, quando atravessava a rua Ayacucho na direção da avenida Santa Fe, viu a igreja.

Fazia quantos anos que não entrava numa igreja? A quietude, as mulheres sentadas nos bancos de madeira, a pia de água benta, um sacerdote atrás das cortininhas do claustro, palavras em latim, murmúrios. Então vai até o confessionário, ajoelha-se.

O conto termina aí? Ou inclui o que diz ao se confessar?"

("Notas em um diário", Ricardo Piglia)
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sexta-feira, 18 de março de 2011

sobre a água

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"O que na água Bloom, amante da água, tirador de água, portador da água, voltando ao fogão, admirava? Sua universalidade: sua uniformidade democrática e constância em sua natureza em procurar o próprio nível: sua vastidão no oceano da projeção de Mercator: sua imensurável profundidade na fossa de Sunda excedendo 8000 braças: a inquietação de suas ondas e partículas superficiais percorrendo em turnos todos os pontos da costa: a independência de suas unidades: a variabilidade das condições marinhas: sua imobilidade hidrostática na calmaria: sua turgidez hidrocinética nas marés baixa e de primavera: sua subsidência depois da devastação: sua esterilidade nas calotas circumpolares, ártica e antártica: sua importância climática e comercial: sua preponderância de 3:1 sobre a terra seca: sua hegemonia indisputável estendendo-se em léguas quadradas por toda a região abaixo do trópico subequatorial de Capricórnio: a estabilidade multisecular de sua bacia primordial: seu leito marrom-alaranjado: sua capacidade de dissolver e manter em solução todas as substâncias solúveis incluindo milhões de toneladas dos metais mais preciosos: sua lenta erosão de penínsulas e ilhas, sua persistente formação de ilhas e penínsulas homotéticas e promontórios em declive: seus depósitos aluviais: seu peso e volume e densidade: sua imperturbabilidade em lagunas e lagoas dos planaltos: sua gradação de cores nas zonas áridas e temperadas e frias: suas ramificações veiculares em correntes continentais riocontidas e rios afluentes a derramar no oceano com seus tributários e correntes transoceânicas, correntedogolfo, cursos norte e sul e equatorial: sua violência em maremotos, trombas-d’água, poços artesianos, erupções, torrentes, turbilhões, enchentes, ressacas, divisores d’águas, bifurcações de água, gêiseres, cataratas, redemoinhos [...]"

Trecho do Ulysses, traduzido pelo André Conti, aqui.
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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

precursor velado

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Documentário de Ricardo Piglia e Andrés Di Tella sobre Macedonio Fernández, autor do sensacional Museu do Romance da Eterna, que editei e acaba de sair pela casa editorial cossaca.


Além do Museu apontar muitos caminhos que a ficção portenha tomaria no século vinte, Macedonio, ele mesmo, nossa, valha-me Deus. Começou a escrever o Museu (sua obra mais importante) em 1904 e morreu em 1952 sem ter colocado ponto final no livro, que não considerava acabado e só foi ganhar edição em 1967. Além da caligrafia a la Walser, Macedonio escrevia em qualquer folha solta ou pedaço de papel que visse pela frente -- e tudo se espalhava por bolsos, potes e gavetas. Foi promotor e advogado. Só andava de poncho e em 1927, saiu candidato à presidência da Argentina, porque dizia que era mais fácil ser presidente da Argentina do que abrir um bar, já que muita gente queria abrir um bar e poucos queriam ser presidente.

Conhecemos Macedonio através de Borges, que talvez tenha no autor do Museu seu principal precursor. Mas, como tudo o que respira e se move em torno de Borges, Macedonio também ficou à sombra. Numa passagem do diário de Bioy Casares, a dupla Borges/Bioy, cujo drinque predileto era o líquido negro da maledicência, comenta que nem o próprio Macedonio entendia os livros que escrevia. Piglia, autor de A cidade ausente e do dicionário macedoniano, diz que não era bem assim e que, na verdade, é só a partir de Macedonio que se torna possível escrever romances na Argentina.

O documentário é um pouco solene (coisa que Macedonio, o malucão primordial das letras portenhas, não aprovaria), mas serve para entender melhor esse autor estranho e único, praticamente desconhecido por acá.
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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

e talvez por isso se conte tanto

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"Contar deforma, contar os fatos deforma os fatos e os tergiversa e quase os nega, tudo o que se conta passa a ser irreal e aproximado embora seja verídico, a verdade não depende de que as coisas tenham sido ou acontecido, mas de que permaneçam ocultas e sejam desconhecidas e não contadas, enquanto se relatam ou se manifestam ou se mostram, mesmo que seja no que parece mais real, na televisão ou no jornal, no que se chama realidade ou vida ou vida real até, passam a fazer parte da analogia e do símbolo, já não são fatos, mas se transformam em reconhecimento. A verdade nunca resplandece, como diz a fórmula, porque a única verdade é a que não se conhece nem se transmite, a que não se traduz em palavras nem em imagens, a encoberta e não averiguada, e talvez por isso se conte tanto ou se conte tudo, para que nunca tenha ocorrido nada, uma vez que se conta."

Javier Marías, Coração tão branco, 1991
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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

dia de sol

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Francesca Woodman, Untitled 1975-80
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"The sun, from the human point of view (in other words, as it is confused with the notion of noon) is the most elevated conception. It is also the most abstract object, since it is impossible to look at it fixedly at that time of day. If we describe the notion of the sun in the mind of one whose weak eyes compel him to emasculate it, that sun must be said to have the poetic meaning of mathematical serenity and spiritual elevation. If on the other hand one obstinately focuses on it, a certain madness is implied, and the notion changes meaning because it is no longer production that appears in light, but refuse or combustion, adequately expressed by the horror emanating from a brillint arc lamp. In practice the scrutinized sun can be identified with a mental ejaculation, foam on the lips, and an epileptic crisis. In the same way that preceding sun (the one not looked at) is perfectly beautiful, the one that is scrutinized can be considered horribly ugly. In mythology, the scrutinized sun is identified with a man who slays a bull (Mithra), with a vulture that eats the liver (Prometheus): in other words, with the man who looks along with the slain bull or the eaten liver.

The Mithraic cult of the sun led to a very widespread religious practice: people stripped in a kind of pit that was covered with a wooden scaffold, on which a priest slashed the throat of a bull; thus they were suddenly doused with hot blood, to the accompaniment of the bull's boisterous struggle and bellowing -- a simple way of reaping the moral benefits of the blinding sun. The same goes for the cock, whose horrible and particularly solar cry always approximates the screams of a slaughter. One might add that the sun has also been mythologically expressed by a man slashing his own throat, as well as by an anthropomorphic being deprived of a head. All this leads one to say that the summit of elevation is in practice confused with a sudden fall of unheard-of violence. The myth of Icarus is particularly expressive from this point of view: it clearly splits the sun in two -- the one that was shining at the moment of Icaru's elevation, and the one that melted the wax, causing failure and a screaming fall when Icarus got too close (...)".

Bataille, "Rotten sun". Visions of excess, 1927-1939
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