quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

going under

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Texto que escrevi em 2007 sobre o Zezão, na Huck Magazine. Na mesma redação, funciona ótima revista de cinema, Little white lies.
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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

para falar às pessoas nos dias de sol

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"Cremos que nuvens são injustamente amaldiçoadas e que a vida seria incomensuravelmente mais pobre sem elas. Para nós, elas são os poemas da Natureza, a mais igualitária de suas criações. Nos comprometemos a combater a 'mentalidade do céu azul' onde quer que ela exista. A vida seria tediosa se, dia após dia, tivéssemos de olhar para uma monotonia sem nuvens." (Da Carta de princípios da Sociedade de Admiração das Nuvens.)
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

pretty, isn't it?

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"Yes, killed him. I killed him for money and for a woman. I didn't get the money and I didn't get the woman. Pretty, isn't it?"

(Double Indemnity [Pacto de sangue]; Billy Wilder)
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

corvo reloaded

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Trecho de "Poe: o poeta, o narrador e o crítico" (1956), do Cortázar.

"A poesia é uma urgência, cuja satisfação é alcançada, cumprindo-se certas formalidades, adotando-se certos procedimentos. Mas a noção de 'poema a frio', que parecia nascer do texto da Filosofia da composição [Poe, 1846], se vê sensivelmente diminuída. À luz desta admissão de um ímpeto poético que tem toda a violência daquele que os românticos reconheciam [Cortázar se refere ao que escreve Poe no prefácio de O corvo e outros poemas, que a 'poesia não foi para ele um propósito, mas sim uma paixão'], O corvo deve ser reconsiderado.

Não há dúvida de que neste poema há muito de excessivamente fabricado, visando a obter um profundo efeito geral por meio da sábia gradação de efeitos parciais, de preparação psicológica, de encantamento musical. Neste sentido, o relato que Poe nos faz de como o escreveu parece corroborado pelos resultados. Sabe-se, contudo, que a verdade é outra: O corvo não nasceu de um plano infalivelmente pré-concebido, mas, sim, de uma série de estados sucessivos (e obsessivos, pois Poe viveu vários anos fustigado pelo tema -- nascido da leitura de Barnaby Rudge, de Dickens --, provando-o em diferentes planos, aproximando-se, aos poucos, da versão final), estados esses que se desalojavam ou aperfeiçoavam mutuamente até atingirem esse texto, onde a tarefa de pôr e tirar palavras, pesar cuidadosamente cada ritmo, equilibrar as massas, alcança uma perfeição menos arquitetônica do que mecânica. Este corvo é um pouco como o rouxinol de corda do imperador da China; é, literalmente, uma 'criação rítmica de beleza'; mas uma beleza fria, magia elaborada pelos conjuros impecáveis do grande mago, um estremecimento sobrenatural que lembra o vaivém da mesa de três pernas. Não se trata de negar estas evidências. Mas, isto sim, é lícito suspeitar, à luz de uma análise global de impulsos e propósitos, que a relojoaria de O corvo nasce mais da paixão que da razão, e que, como em todo poeta, a inteligência é ali auxiliar do outro, disso que 'se agita nas profundezas', como o sentiu Rimbaud."
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Da coleção de fotos do meu amigo Vincenzo.
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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

xampu no olho

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Historinha para a revista Gloss deste mês.

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No dia em que a Manu e eu nos casamos, o Rio de Janeiro parecia o Vietnã. Ou pelo menos a minha ideia de Vietnã, mistura de verbete da Mirador e Bom dia, Vietnã.

A chuva tinha parado, as bicicletas começavam a sair, o asfalto era a pele de uma rã (esfolada viva, porque isso é o Vietnã) e as árvores tinham um verde fluorescente, de arrozal. Eu nunca pensei em me casar. Mas pra quem tinha ido pra Disney aos doze anos, e depois colegial no Santa Cruz, faculdade, temporada em Barcelona, emprego na editora de revistas, até que fazia sentido. O casamento não teve cerimônia. Mas bebi o equivalente a Houston, Texas, para ficar nas comparações territoriais – e assim nos aproximamos de Nevada.

Estávamos casados há dois anos quando decidimos atravessar os Estados Unidos, nas férias. O voo foi legal. Nosso avião aterrissou em Miami, onde mora a irmã da Manu e é para onde vai o neon, quando morre. De lá, rumamos para o Kansas, "o Estado do pão", e então, pegamos um carro. Tomamos cerveja na fronteira sul do Colorado, vimos bolas de feno rolar pelo Arizona e discutimos feio em Utah. Terminaríamos a viagem em San Francisco, mas no quarto do hotel em Las Vegas, Nevada, quase fui atingido por um cinzeiro de esfinge.

A Manu estava brava comigo. Não tinha se recuperado da coisa toda em Utah, e o uísque com suco de grapefruit só piorou a situação. Eu usava um chapéu maneiro (de caubói), e o quarto, com as roupas de cama de faraó, começava a ficar pequeno demais para nós dois. A Manu tinha o rosto borrado de choro. E tentava me furar com um candelabro.

Antes que alguém se machuque, é preciso dizer que 150 mil casais se casam por ano em Nevada. Vestidos de Elvis, Marilyn. Gente que se ama. Dudley Moore se casou em Nevada. Nos fins de semana, é possível casar a qualquer hora da madrugada. Há a opção de se casar num helicóptero, sobrevoando o Grand Canyon. Na igreja do Elvis ou em praias cenográficas. Em Las Vegas, são 400 casamentos por dia. Mas eu nunca ouvi falar de um divórcio em Las Vegas.

A Manu parou. Ficamos nos olhando. Soltou o candelabro. Ela também nunca tinha ouvido falar em viajar até a costa oeste dos Estados Unidos para se separar.

Pegou a lista, ligamos para um cartório. Divorciar-se em Nevada era tão fácil quanto se casar. “Não é necessário fazer alegação nem provar adultério, senhor. Só se apresentar com a identidade ou o passaporte, senhor.” Os casamentos em Nevada têm validade apenas no estado de Nevada. Os divórcios também.

Às vezes (sobretudo quando estou lavando o cabelo) penso que nada pode ser mais surreal do que o casamento. Um escritor disse que as pessoas não são monogâmicas por natureza, pelo menos grande parte delas. Mesmo assim, misteriosamente, encontram alguém, casam-se e jogam o jogo ancestral de marido e mulher. E estou quase acreditando que se continuamos juntos até hoje, a Manu e eu, é porque existe um lugar onde a gente se divorciou. Onde saímos sozinhos para beber uísque com suco de grapefruit. E de tempos em tempos (o xampu no olho), com as coisas indo bem ou mal, voltamos para lá.
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

fez sol no feriado

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Jindřich Štreit, 1978–1990 The Village (Village is a World).
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

toco de madeira que fala

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Texto de orelha para um livro do Faulkner, A Árvore dos Desejos.

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Quando William Faulkner (1897-1962) escreveu A Árvore dos Desejos, em 1927, a imensa árvore-Faulkner ainda não existia na literatura. O condado de Yoknapatawpha, cenário fictício de seus principais livros, era só uma semente; O som e a fúria não havia sequer sido plantado; e estava longe de aflorar a grande enchente daquele que é um dos cinco romances mais incríveis desde a Arca de Noé, Palmeiras selvagens.

Naquele ano, depois de uma breve temporada em Paris (onde deixou a barba crescer e rondava o café favorito de Joyce), Faulkner tinha acabado de publicar seu primeiro romance, Soldier’s Pay, e um de seus esportes favoritos era contar histórias para crianças – era especialista nas de abóboras e Halloween. Foi então que, após ser demitido da agência de correio onde trabalhava (porque lia demais), teve a ideia deste livro.

A Árvore dos Desejos é uma odisseia fabulosa: crianças encolhem, pôneis saem de uma sacola e, se alguém “virar o travesseiro de lado antes de pegar no sono, tudo pode acontecer”. No dia do seu aniversário, a pequena Dulcie se junta ao seu irmão caçula, Dicky, à criada Alice e ao amigo George, e guiados por um misterioso garoto ruivo chamado Maurice, saem à procura de uma árvore mágica. No caminho, a caravana ganha novos integrantes: um soldado desiludido com a guerra, um toco de madeira que fala e o velhinho Egbert, um dos personagens mais sensíveis já criados pelo autor.

Quando encontram uma árvore (que não é a dos desejos, segundo o velhinho Egbert), a história se desdobra em conflitos e situações de perigo. Por baixo da narrativa, tipicamente de aventura, surge uma ferida: a ideia de que os desejos podem ser traiçoeiros e, no limite, causar o mal. Essa dimensão trágica do sonho é amplificada nas ilustrações de Guazzelli, que com um traço clássico e imagens oníricas (casas tortas, galhos retorcidos, paisagens desoladas) dá à história um contorno sinistro e delirante.

Do ponto de vista temático, A Árvore dos Desejos antecipa as obras adultas do escritor: o sul dos Estados Unidos pós-Secessão, a reflexão sobre a guerra (“nunca vi nenhum soldado ganhar na guerra qualquer coisa que seja, essas guerras dos brancos são sempre meio esquisitas”) e, sobretudo, as referências bíblicas. O antídoto para a ambição desmedida, aqui, está na renúncia e humildade – uma espécie de fé naquilo que habita a superfície do mundo –, simbolizadas pela figura de São Francisco.

Ah, a árvore do título fica longe à beça – segundo o velhinho Egbert. E no final da história, a contaminação do real pelo delírio sugere um movimento que parece fundar toda a obra daquele que J. M. Coetzee chamou de “o único gênio inequívoco da literatura norte-americana do início do século vinte”.
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domingo, 25 de outubro de 2009

não fica me excitando que eu tô de sunga

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Texto para o Brasil Econômico de sábado (p. 56). Sobre sunga.

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Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU nada diga acerca da sunga, é indiscutível no mundo de hoje o direito de usar o referido item do vestuário masculino (apud deputado Fernando Gabeira, sunga lilás de crochê, Ipanema, 1980).

Na última semana, o senador Eduardo Suplicy desfilou pelos corredores do Senado trajando uma sunga vermelho-tomate, para escândalo de inimigos e considerável fatia de seus correligionários. Tanto se falou (“não conheço a sunga de Suplicy, mas sou contra”; “sunga é mais uma complicação para a vida do indivíduo”; “subjuga a barriga”) que alguns precisaram sair em defesa do senador (“foi por cima da calça, então não vejo problema”). Chegou-se até a discutir se houve ou não quebra de decoro. Perderam-se noites de sono. A sunga, que tinha sido um presente, foi devolvida.

Nada disso teria acontecido, claro, se estivessemos falando de uma gravata. A sunga (que em São Paulo é “maiô”, e os veteranos do Clube de Regatas Tietê chamam de “calção de banho”) é polêmica por natureza. Discutir sunga acirra os ânimos, traz à tona preconceitos e, desde Tarzan, nos coloca diante da inconstância de nossa alma selvagem -- Rousseau de sunga, ressurgido nas areias de Ubatuba. Esse caráter controverso talvez explique um pouco os altos e baixos pelos quais o traje passou desde a sua criação, no início do século 20. Num passado recente, com a escalada das bermudas e ao ter sua imagem vinculada a barrigas proeminentes, meias soquete e tênis branco, a sunga saiu de moda. Caiu no ostracismo, no ridículo. Mas não morreu e vive hoje um renascimento.

Há quem diga que nunca se usou tanta sunga. Na internet, um grupo de intelectuais de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre forma uma espécie de movimento pró-sunga. Conhecido como FPC, o grupo é um dos principais divulgadores do traje. Consideram a sunga uma conquista, já que no século 19, a roupa de banho chegava a pesar 10 quilos quando molhada, e o azul-marinho predominava. As sungas, por sua vez, são leves e divertidas, há opções de cores, além de versões fluorescentes. André Czarnobai, 30 anos, um dos fundadores da congregação, acredita que a sunga é a verdadeira contracultura. “Para fazer natação = indispensável. Para usar na praia = revela caráter, despojo e finesse. Para usar em reuniões de amigos à beira da piscina = só se tem gostosa”, enfatiza. Sobre o tópico, nunca é demais lembrar Leo Jaime, que em sua versão do standard Sunny, de 1984, alertava: “Sônia, não fica me excitando que eu tô de sunga”.

Como exemplo de por que a sunga deveria ser adotada como vestimenta oficial de senadores, outro integrante do grupo, Renato Delmonaco, 28, cita sua própria vida. “Depois que comecei a usar sunga diariamente, minha vida melhorou 300%, no mínimo.” Renato tem usado sunga todos os dias há mais ou menos um ano e meio. “É quase medicinal para mim”, conta. “Qualquer tipo de problema, forma ou natureza fica em segundo plano quando visto minha sunga.”

Se a sunga define caráter e personalidade, o episódio Suplicy é revelador. Faz pensar na primeira viagem com os amigos para a praia, na adolescência. Quando todos estão de bermuda, na areia, eis que alguém do grupo surge de sunga. Vai ter que suportar risos, escárnio, troça, zombaria. Toda uma vida será forjada ali, naquele átimo em que, de sunga vermelha, alguém resiste entre as bermudas.
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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

fotos pós-chernobyl

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Martin Amis fala, em entrevista ao Michel:

“Não procuro por histórias tanto quanto por níveis de percepção. O que quero saber é a maneira como os escritores interpretam o mundo, em que nível isso se dá, mais do que a respeito de sagas familiares ou narrativas tradicionais. Não tem a ver com contar histórias ou não, e sim com como se escreve.”

“O grande pós-modernismo europeu está acabado como ficção. Era um grande insight de como o mundo funcionava; não era, no fim das contas, um filão ficcional muito produtivo, rico por si só. Era muito auto-consciente, muito limitado, e agora o romance parece ter evoluído para uma invenção mais ampla. Não há, agora, uma grande tradição dominando o romance. Contar histórias voltou a ser importante. Enredos voltaram a sê-lo."

"Na minha geração, há uma maior liberdade em relação a essas regras, com o realismo mágico e o pós-modernismo. A realidade apresentada ao leitor não é tão confiável. Mas agora há um movimento contrário. A próxima geração, suspeito, vai precisar de velocidade e enredo. Interesse humano, não abstrações (…). Nos anos 80, talvez, a presença do pós-modernismo deixasse as coisas mais ‘fechadas’. Um romance como Money, por exemplo, enfureceria o meu pai [o escritor Kingsley Amis]. Aliás, enfureceu… Agora, apesar da liberdade de abordagem, há a volta das ‘leis da realidade’ ao romance. É a minha impressão.”
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sexta-feira, 9 de outubro de 2009

minha casa engordava

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Esta é a história de como se vive na barriga de uma baleia.

Esta é a continuação da história de como se vive na barriga da baleia:

"E achando-me em dias tão difíceis decidi alimentar
a baleia que então me dava guarida:
tive jornadas que excediam em muito as doze horas
e meus sonhos foram ofícios rigorosos, meu cansaço
engordava como o ventre da baleia:
que trabalheira caçar os animais mais robustos,
despojá-los de todas as suas escamas e uma vez abertos
arrancar-lhes o fel e o espinhaço,
e minha casa engordava.

(Foi a última vez em que fui duro: insultei a baleia,
recolhi meus escassos pertences para buscar
algum abrigo em outras águas, e já me preparava
para construir um periscópio
quando no teto vi incharem como dois sóis seus pulmões
– iguais aos nossos
mas estirados sobre o horizonte –, suas omoplatas
remavam contra todos os ventos,
e eu sozinho,
com minha camisa azul-marinho em um grande prado
onde podiam alvejar-me de qualquer janela: eu, o coelho,
e os cães velozes atrás, e nenhum buraco.)

E achando-me em dias tão difíceis
acomodei-me entre as zonas mais moles e mau cheirosas da baleia."

(Antonio Cisneros, "Apêndice do poema sobre Jonas e os desalienados", no Canto cerimonial contra um tamanduá, 1968. A tradução é de Carlito Azevedo e Aníbal Cristobo)
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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

it's difficult to love a woman whose vagina is a gateway to the world of the dead

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A Abebooks inaugurou um departamento de livros bizarros. Títulos como The lost art of towel origami, Old Tractors and the Men Who Love Them: How to Keep Your Tractors Happy and Your Family Running e The haunted vagina (cuja descrição é: "it's difficult to love a woman whose vagina is a gateway to the world of the dead") estão entre as ofertas, além de obras sobre besouros e taxidermia para iniciantes. O livro estranho da semana é uma coletânea dos mais horríveis cortes de cabelo de todos os tempos -- dos mesmos editores de The mullet, hairstyle of the gods.

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segunda-feira, 14 de setembro de 2009

bigode feelings

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Peter Sarstedt, Where Do You Go To My Lovely, 1969
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sábado, 12 de setembro de 2009

yes, nós temos stimmung

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Dando sequência às comemorações do Ano do Chibo no Brasil (que já teve entrevistas e trilha sonora), transcrevi alguns textos que o Eduardo Sterzi, o Manuel da Costa Pinto e o Julio Pimentel escreveram sobre o livro siamês. Aliás, em breve, o Verão entra em campo, nas oitavas-de-final da Copa de Literatura 2009. É chute na canela e areia no olho!

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"No filme Jeux interdits (no Brasil, Brinquedo proibido), de René Clément, Paulette, uma menina de cinco anos que perdeu os pais num ataque aéreo nazista, é acolhida pela família do pequeno camponês Michel, seis anos mais velho. Fora encontrada com um cachorro morto nos braços, e os dois novos amigos decidem enterrá-lo. Durante o restante do verão de 1940, época em que se passa o filme, constroem um cemitério para insetos e outros pequenos animais.

Foi do filme de Clément que Vanessa Barbara e Emilio Fraia extraíram a epígrafe do breve romance que escreveram juntos, O verão do Chibo (Alfaguara). Na epígrafe -- que desloca o leitor, de súbito, para o interior de um universo em que a infância revela-se inquietamente impregnada pela consciência da finitude -- Paulette, confrontada com a proposta de construírem o cemitério de animais, pergunta a Michel o que é um cemitério, e o amigo lhe diz: "É onde põem os mortos para que fiquem juntos". Indagado, então, sobre por que os mortos são postos juntos, Michel responde: "Para que não se aborreçam".

A epígrafe, aqui, não é acessória, mas decisiva: propõe algo como a disposição (a Stimmung) com que o livro deve ser abordado, projetando os acontecimentos nele narrados numa tela de amplitude e profundidade maiores do que aquela que o leitor previsivelmente lhes concederia. Afinal, a história que se conta é, à primeira vista, banal: um menino não nomeado, com idade próxima à de Paulette, e que faz as vezes do narrador, chega à casa de campo onde passará o verão e reencontra dois amigos de férias anteriores; no automóvel que o traz, o menino está no banco "do passageiro, de joelhos, com a cabeça para fora", quando avista os amigos que brincam no milharal vizinho à casa; no banco de trás, num isolamento que será sua distinção ao longo da narrativa, está o Chibo, seu irmão mais velho, doze anos recém-completados. De uma perspectiva infantil, o livro poderia ser resumido numa questão aparentemente ingênua: por que o irmão mais velho não quer mais brincar com os companheiros de outros verões? No entanto, a perspectiva da narração é bífida, e esta questão desdobra-se em interrogações mais graves: a voz que ouvimos no texto se tensiona todo o tempo, embora com sutileza, entre aquela da criança que conta a história enquanto ela acontece e a aquela outra do adulto que relembra a história com distanciamento; o vocabulário oscila permanentemente entre a imaginação desenfreada da criança, que transfigura as brincadeiras mais triviais em complexas tramas de espionagem e guerra, e a reflexidade dura do adulto. Daí que a morte de uma lagartixa, pelas mãos inocentemente cruéis de um dos amigos, possa suscitar no narrador uma reflexão que, ao menino, talvez estivesse vedada -- e que, iluminada pela epígrafe, como que sintetiza o romance: "Pensei no Chibo, em todo aquele silêncio do banco de trás, e que sim, alguém pode começar a morrer muito cedo (e levar dias, horas ou anos para não existir mais)".

A infância, a rigor, sempre acaba mal, pois a criança precisa morrer para renascer como adulto. A inteligência poética dos autores (que faz de O verão do Chibo algo muito próximo de uma obra-prima, e ainda mais louvável se lembrarmos que se trata da estreia em livro de ambos) está em encarar de frente esta constatação, que é o tema secreto da maioria das narrativas sobre a infância. Aos olhos do narrador, todos, especialmente o Chibo, terminam aparecendo como fantasmas. O romance, em contraste, quer ser uma espécie de cemitério em que as experiências da infância são postas juntas, a salvo do aborrecimento da maturidade. O fim da infãncia pode ser tão "cruel" quanto o fim de um verão, "e fazemos questão de esquecer e de pensar que talvez fosse possível enganar o tempo, alongar o verão pra mais tarde e não dormir."

(Eduardo Sterzi, Revista Cult)
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"(...)

O romance O verão do Chibo foi saudado por conta da autoria a quatro mãos, mas não se percebem nele grandes alternâncias estilísticas. Sua qualidade é de outra ordem: reside na capacidade ímpar de incorporar o olhar de um garoto que transforma seus jogos com os amigos em aprendizado das relações afetivas e sociais.

O enredo se passa durante as férias do narrador e se desenrola quase exclusivamente num milharal em que os meninos da turma (incluindo Chibo, seu irmão mais velho) travam uma guerra de brincadeira. O intervalo de tempo (férias de verão) e o recorte geográfico (sítio interiorano) compõem um "correlato objetivo" da infância: materializam ficcionalmente o período de duração de fantasias que logo se chocam com uma realidade "adulta" pressentida apenas por seus efeitos -e que por isso permanece ameaçadora.

Aparece no livro aquilo que faz parte de um imaginário clássico da infância: a casa no tronco da árvore, a "zona proibida" e a transformação de tampas de garrafa e miolo de pão em utensílios de uma micro-sociedade com hierarquias e coordenadas próprias.

Sem cair numa linguagem infantilizada, Fraia e Barbara -que estarão na Flip- não se desviam do horizonte mental da criança que lida com o desaparecimento de Chibo ou com o surgimento de "homens barbudos de galochas" como capítulos de um enredo fantasioso.

Mas, ao longo do livro -que não deixa de ser um romance de formação em chave lúdica-, o narrador vai conectando esses seres alienígenas e acontecimentos misteriosos ao mundo de fora, aos lavradores que trabalham no milharal e ao fato de que "a gente passa pro outro lado".

(...)"

(Manuel da Costa Pinto, Folha de S.Paulo)
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"O verão do Chibo é um exercício de estilo. Seus dois autores – Vanessa Barbara e Emilio Fraia – buscam uma dicção fluida, um narrador que mantenha o ritmo nas descrições, que enxergue de fora e, ao mesmo tempo, atue e fale como um dos participantes dessa história de crianças que crescem e, ao crescerem, mudam de lugar, de condição, de mundo.

Às vezes, o leitor se sente em meio a uma quadrilha ou a uma brincadeira de roda, em que os pedaços da infância voltam e se combinam, dançam entre si, trocando de mãos e de pares, sem perder o modo fragmentário de quem lembra e sabe que, do passado, fica mais ausência do que resíduos, embora a memória às vezes nos persiga, idéia fixa, como mosca teimosa que insiste em pousar.

Chibo é o irmão mais velho e desaparecido do narrador, que percebe outros sumiços na ciranda do crescimento. Chibo é o advento desconfortável da maturidade. Não importa se o Chibo é real – para o narrador, para o leitor. Nem se suas aventuras, detalhadas na fala do mais moço, de fato aconteceram como são contadas. Chibo é tudo que se pode querer como irmão e modelo: forte, protetor, sabido; é aquele que possui a figurinha rara e lidera o universo em que vivem os personagens da história; conhece a zona proibida e ensina a respirar – literal e metaforicamente.

Por isso, sua ausência rodeia o narrador como a corda na garganta, o mar ao que se afoga. A perda é sentida no presente, que move a memória e preenche – com a sensação do hoje – os intervalos do passado lembrado. A saga quotidiana e infantil do narrador atravessa, assim, as referências que podem ajudá-lo a compreender o que o irmão foi e o que ele, pequeno-quase-grande, pode vir a ser. Para tanto, aparecem, aqui e ali, sinais do cinema e dos quadrinhos – de super-heróis a Calvin & Haroldo, de um mundo recheado de onomatopéias e de (nem sempre necessários) trocadilhos. Porque se é verdade que só crescemos quando esconjuramos os fantasmas da infância, é também inevitável que retomemos os verões com Chibo para chegarmos ao verão do Chibo – que, na verdade, é o verão sem Chibo: são os tempos-territórios que podem nos justificar, que podem ficar mesmo quando a infância se desfizer. Quando o novo lugar do Chibo e dos outros for compreendido, a ausência,essa ausência assimilada, ninguém a roubar mais do narrador.

Embora haja algum excesso no livro (principalmente nas citações e repetições), os autores conseguem manter o ritmo e a fluidez do relato e lidam bem com as variações de registro, passando do mosaico de cultura pop a um lirismo que não chega a ser declarado, mas tampouco é envergonhado. Certamente é o argumento sólido, associado ao assumido contorno cinematográfico da narrativa, que assegura a força do romance e mostra que Barbara e Fraia não se limitam – como tantos, hoje em dia – a fazer joguinhos de códigos para que os amigos decifrem."

(Julio Pimentel, Paisagens da crítica)
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terça-feira, 18 de agosto de 2009

chega, de pé!

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"Vladimir: E o senhor, o senhor é Pozzo?
Pozzo: Certamente, sou Pozzo.
Vladimir: Os mesmos de ontem?
Pozzo: De ontem?
Vladimir: Nós nos vimos ontem. (Silêncio) O senhor não se lembra?
Pozzo: Não me lembro de ter encontrado ninguém ontem. Mas amanhã não vou me lembrar de ter encontrado ninguém hoje. Não conte comigo para esclarecer nada. E além disso, chega. De pé!"

Esperando Godot, Beckett, 1949
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sexta-feira, 14 de agosto de 2009

cabelo, o magnífico

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Dakota hair, Ryan McGinley, 2004
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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

planos de fuga

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"Há várias coisas que as pessoas das pesquisas de opinião nunca se preocupam em perguntar. (...) Por exemplo, quantos adultos não têm um seriado de aventuras passando dentro de suas mentes? Quantos não sonham acordados, conscientemente, com uma história em que deixam de ser um funcionário da IBM para se transformar em um belo semideus, que frequenta palácios esplêndidos, salva donzelas de monstros (...). A vida e o sucesso de Burroughs [o criador do Tarzan, Edgar Rice Burroughs] nos levam a pensar que muitas pessoas acham suas vidas tão insatisfatórias que só conseguem levá-las adiante, ano após ano, contando a si mesmas histórias nas quais são capazes de dominar seu ambiente de uma forma impossível de acontecer em nossa superorganizada sociedade. 'A maior parte das histórias que escrevi eram as histórias que eu contava para mim mesmo antes de dormir', disse Edgar Rice Burroughs." (Gore Vidal, no ótimo "Tarzan revisitado" (1963), na ótima edição número dois da revista Serrote)
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"Lo interesante, en el caso de Onetti, es que esos derrotados al final escapan a través de la ficción. Todos viven experiencias de derrota efectivamente radical en el mundo tal como es. A algu­nos eso los lleva a suicidarse – hay una gran cantidad de personajes suicidas en Onetti – pero los que no se suicidan, escapan por la fan­tasía. Se inventan mundos pura­mente imaginarios en los que se refugian y pueden sobrevivir. Y yo creo que ése es el origen de la ficción; creo que nosotros empeza­mos a inventar porque el mundo no nos resultaba suficiente. O nos resultaba hostil, no lo entendía­mos, o vivíamos como golpeados, atemorizados por él. Y entonces, al final encontramos esa fórmula, que era inventar otros mundos para vivir la ilusión del relato, del relato oral al principio, y después, el relato escrito, o filmado. A mí me parece que una de las origina­lidades de Onetti consiste en que prácticamente toda la obra de él muestra este proceso, en distintos individuos, hombres, mujeres, que después de vivir experiencias atroces de frustración, de derrota, pues se escapan a través de la fan­tasía. Es evidente que eso Onetti no lo pudo planear nunca, él no pudo saber nunca que iba a darle a su obra toda esa unidad, diríamos, orgánica, a través del tema de la ficción. (Vargas Llosa, em entrevista, sobre o Onetti)
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terça-feira, 21 de julho de 2009

dia de festa

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Jour de fête, Jacques Tati, 1949
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"Os famosos Comícios chegaram realmente! Já na manhã da solenidade todos os habitantes, em suas portas, entretinham-se com os preparativos; haviam enguirlandado com hera o frontão da prefeitura; no prado fora levantada uma tenda para o festim e, no meio da praça, diante da igreja, uma espécie de bombarda devia assinalar a chegada do Sr. Governador e o nome dos agricultores premiados. A guarda nacional de Buchy (ela não existia em Yonville) viera juntar-se ao corpo de bombeiros cujo capitão era Binet. Usava ele, naquele dia, um colarinho ainda mais alto do que o costume; e, apertado em sua túnica, tinha o busto tão duro e imóvel que toda a parte vital de seu corpo parecia ter descido às pernas, que se levantavam em cadência com passos marcados, em um só movimento. Como subsistia uma rivalidade entre o perceptor e o coronel, ambos, para mostrar seus talentos, faziam evoluir seus homens à parte. Viam-se, alternadamente, passar e passar de novo as dragonas vermelhas e os plastrões negros. O movimento não acabava e recomeçava sempre! Nunca houvera uma tal ostentação! Vários burgueses, já na véspera, haviam lavado suas casas; as bandeiras tricolores encimavam as janelas entreabertas; todos os botequins estavam cheios e, com o bom tempo que estava fazendo, os gorros engomados, as cruzes de ouro e os lenços coloridos pareciam mais brancos do que a neve, cintilavam ao sol claro e reanimavam, com sua miscelânea disseminada, a sombria monotonia das casacas e das blusas azuis. As granjeiras das redondezas, ao descer do cavalo, retiravam o grande alfinete que lhes mantinha o vestido arregaçado ao redor do corpo por medo das manchas; e os maridos, pelo contrário, a fim de defender seus chapéus, conservavam acima deles lenços de bolso mantendo presa entre os dentes uma de suas pontas.

A multidão chegava à rua principal pelas duas extremidades da vila. Transbordava das ruelas, das alamedas, das casas e ouvia-se, de tempos em tempos, recair a aldrava das portas atrás das burguesas com luvas de linha que saíam para ir ver a festa. O que todos admiravam sobretudo eram dois longos teixos cobertos de lampiões que ladeavam o palanque onde iriam colocar-se as autoridades; havia ainda, contra as quatro colunas da prefeitura, quatro espécies de varas, trazendo cada uma um pequeno estandarte de fazenda esverdeada, cheio de inscrições em letras de ouro. Lia-se num deles: Ao Comércio, num outro: À Agricultura, no terceiro: À Indústria e no quarto: Às Belas-Artes.

(...)

Todos se assemelhavam. Seus moles rostos claros, um pouco queimados pelo sol, tinham a cor da sidra doce e suas suíças fofas escapavam dos grandes colarinhos duros, seguros por gravatas brancas com o nó bem esticado. Todos os coletes eram de veludo e trespassados; todos os relógios traziam na ponta de uma longa fita um sinete oval de cornalina; e todos apoiavam as duas mãos sobre as duas coxas, puxando com cuidado a entreperna das calças cuja fazenda, ainda não deslustrada, brilhava mais do que o couro das fortes botas.

(...)

A praça, até às casas, estava cheia de gente. Viam-se pessoas debruçadas em todas as janelas, outras de pé em todas as portas e Justin, diante da vitrina da farmácia, parecia completamente cravado na contemplação do que estava olhando. Apesar do silêncio, a voz do Sr. Lieuvain perdia-se no ar. Somente chegavam aos ouvidos fragmentos de frases interrompidas pelo barulho das cadeiras na multidão; depois cada um ouvia, de repente, atrás de si, um longo mugido de boi ou então os balidos dos cordeiros que se respondiam nas esquinas das ruas. De fato, os vaqueiros e os pastores haviam levado até lá seus animais que mugiam de vez em quando, arrancando com a língua algum pedaço de folhagem que lhes pendia do focinho."

Madame Bovary, Flaubert, 1857 (Tradução de Fúlvia M.L. Moretto)
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domingo, 12 de julho de 2009

o amigo da família renana

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Foi o Samuel (Titan Jr.) quem me apresentou, no ano da glória de 2006, e atende por Johann Peter Hebel. Parecem histórias tiradas da caixinha de tesouros do Reader's Digest, que eu lia quando era menor -- porque um dia meu pai assinou a revista e passamos a fazer parte do seletíssimo grupo que recebeu pelo resto da vida (mesmo depois de cancelar a assinatura) histórias como a do cachorro Bill que salvou toda uma família de um incêndio, da fabulosa casa mais cara da América ou do imigrante ilegal que colhia tomates e graças-a-seu-esforço-e-superação transformou-se num neurocirurgião de sucesso. Nessa época, eu só queria saber das grandes obras, como a enciclopédia Caldas Aulete (com especial apreço pelos verbetes "bandeiras", "pássaros", "homem da caverna", "sistema solar" e "Turquia") e os almanaques Disney. Hebel tem um certo parentesco com isso tudo. Mas, como nota o Samuel, não há nos relatos de Hebel "um tom único, popularesco ou folclórico", há sim uma mistura de "oralidade e armação da sintaxe; (...) às vezes, sua matéria provém da tradição imemorial, mas há ocasiões em que se faz de repórter para relatar passagens das guerras napoleônicas; sabe contar histórias de proveito sem dispensar o paradoxo; tem intenção edificante, mas sua religião é feita menos de dogmas do que de uma moralidade esclarecida, coisa de quem não passou em vão pelo Iluminismo".

Ou seja, muito verão.

Hebel nasceu na Basiléia em 1760 e foi o responsável por redigir entre 1807 e 1815 o almanaque oficial de Baden, rebatizado por ele de O amigo da família renana. A revista chegou a vender quarenta mil exemplares por ano e em 1811 ganhou uma antologia, que reunia algumas das historietas publicadas, a Caixinha de tesouros do amigo da família renana. Foi esta obra que tornou Hebel conhecido e o fez ganhar fãs como Benjamin e Elias Canetti, que disse:

"Hebel possui aquele dom que esperamos ver num professor: fala claramente e fala para todos. Tem sede de saber e aprendeu muita coisa, mas isso só se nota quando ele transmite um quinhão de conhecimento: explica de tal modo que ninguém esquece mais. Leva todos a sério e sabe ouvir antes de responder, não para um fim estreito, mas porque participa do impulso alheio. Quem lê a Caixinha de tesouros não tem jamais a sensação de que ali haja coisa de somenos: ele sabe relatar alguma coisa de notável sobre o que quer que seja, tudo importa, porque tudo tem vida própria, não apenas a espécie humana, mas também a toupeira, a aranha, o lagarto e até os planetas e cometas, como se também estes fossem vivos".

Abaixo, três historietas, traduzidas pelo Samuel Titan Jr. (entre elas, "Reencontro inesperado", que é uma aula de como fazer o tempo passar em uma narrativa, e que segundo o professor de natação Franz Kafka é "a história mais maravilhosa que há").
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O juiz astuto
É bem sabido que nem tudo vai tão mal no Oriente. Dizem que justamente por lá deu-se o episódio que segue. Um homem rico perdera por descuido uma considerável soma de dinheiro costurada num pano. Anunciou a perda e, como é de costume, ofereceu ao bom sujeito que o encontrasse uma recompensa - e de cem táleres. Logo apareceu um homem direito e honrado. "Encontrei o dinheiro! Deve ser este aqui! Tome o que é seu!" Disse isso com o olhar desanuviado de um homem honesto e de uma consciência em paz, o que era bonito de ver. O outro também se alegrou, mas só porque reencontrara o tesouro perdido - logo se verá a quantas andava sua honra. Contou o dinheiro enquanto pensava depressa em como negar a recompensa prometida. "Meu bom amigo," começou, "havia oitocentos táleres costurados no pano. Mas só restam setecentos. Imagino que tenha aberto uma das costuras e retirado os cem táleres da recompensa. E fez muito bem. Muito obrigado!" Isso não foi nada bonito. Mas a coisa não ficou por aí. A mentira tem pernas curtas, e quem com ferro fere, com ferro será ferido. O bom sujeito, que se importava menos com os cem táleres que com a reputação imaculada, assegurou que trouxera a trouxa assim como a encontrara e que a encontrara assim como a trouxera. No fim, foram ter com o juiz. Ambos confirmaram suas histórias: um, que havia oitocentos táleres costurados dentro do pano; o outro, que não tirara nada do achado e não tocara na trouxinha. Era um mato sem cachorro. Mas o juiz astuto, que parecia conhecer de antemão a honradez de um e as más intenções do outro, resolveu o caso da seguinte maneira. Ordenou que ambos confirmassem firme e solenemente tudo o que haviam dito e sentenciou: "Assim sendo, se um perdeu oitocentos táleres e o outro encontrou apenas setecentos, então o dinheiro deste último não pode ser aquele a que o primeiro tem direito. Você, honrado amigo, fique com o dinheiro que encontrou e conserve-o até que apareça quem tiver perdido apenas setecentos táleres. E a você, não sei qual conselho dar, exceto que tenha paciência até que se apresente alguém com os oitocentos táleres". Assim falou o juiz, e assim a coisa ficou.
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Pouso breve
O chefe da posta disse a um judeu que chegara à estação com dois cavalos: "Daqui para a frente são precisos três cavalos. A estrada segue ladeira acima e o leito está cheio de valas. São três horas até o final". O judeu perguntou: "E quanto tempo levo com quatro cavalos?". "Duas horas." "E com seis?" "Uma hora." "Sabe de uma coisa?", disse por fim. "Atrele oito, assim não preciso nem partir!"
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Reencontro inesperado
Em Falun, na Suécia, há bons cinqüenta anos ou mais, um jovem mineiro despediu-se com um beijo da noiva jovem e bela e lhe disse: "No dia de Santa Lúcia nosso amor será abençoado pela mão do pastor. Então seremos marido e mulher, e vamos construir nosso próprio ninho". "Onde a paz e o amor vão sempre morar", respondeu a bela noiva, com um sorriso gentil, "pois você é tudo para mim, e sem você eu prefiro o túmulo a qualquer outro lugar." Mas quando, pouco antes do dia de Santa Lúcia, ela pediu ao pastor que conclamasse pela segunda vez à igreja "quem soubesse de obstáculo que impedisse estas pessoas de se unirem em matrimônio", foi a morte que se apresentou. Pois no dia seguinte, ao passar pela casa da noiva em seus trajes negros de mineiro - o mineiro veste sempre o seu sudário -, o jovem bateu duas vezes à janela e ainda lhe desejou "Bom dia!"- mas "Boa noite!", nunca mais. Nunca mais voltou da mina, e foi em vão que, naquela mesma manhã, ela bordou para ele, para o dia do casamento, um lenço negro de barra vermelha; como ele não voltasse, ela abandonou o lenço, chorou por ele e jamais o esqueceu. Nesse meio-tempo, a cidade de Lisboa, em Portugal, foi destruída por um terremoto e a Guerra dos Sete Anos chegou ao fim e o imperador Francisco I morreu e os jesuítas foram suspensos e a Polônia, dividida e a imperatriz Maria Teresa morreu e Struensee foi executado, a América se libertou e as forças combinadas da França e da Espanha não puderam conquistar Gibraltar. Os turcos encurralaram o general Stein na Cova dos Veteranos, na Hungria e o imperador José morreu também. O rei Gustavo da Suécia conquistou a Finlândia aos russos e a Revolução Francesa e a grande guerra irromperam e o imperador Leopoldo II desceu também ao túmulo. Napoleão conquistou a Prússia e os ingleses bombardearam Copenhague e os lavradores semeavam e ceifavam. O moleiro moía, os ferreiros martelavam e os mineiros cavavam atrás dos veios de metal em sua oficina subterrânea. Mas no ano de 1809, pouco antes ou depois do dia de São João, quando tentavam praticar uma passagem entre dois poços a bons trezentos côvados sob a terra, os mineiros de Falun retiraram do entulho e do vitríolo o cadáver de um rapaz, todo embebido em sulfato ferroso, de resto intacto e inalterado, a tal ponto que era perfeitamente possível reconhecer suas feições e sua idade, como se ele tivesse morrido uma hora antes ou cochilado durante o trabalho. Mas quando o trouxeram para o ar livre, pai e mãe, amigos e conhecidos, todos tinham morrido havia muito, ninguém conhecia o rapaz adormecido ou sabia de sua desgraça, até que chegou a antiga amada do mineiro que um dia descera para o seu turno e nunca mais voltara. Envelhecida e encarquilhada, chegou apoiada numa muleta e reconheceu o noivo; mais radiante que sofredora, deixou-se cair ao lado do querido cadáver e, depois de se refazer do abalo na alma, disse por fim: "É o noivo por quem chorei durante cinqüenta anos e que Deus me permite ver de novo antes do meu fim. Oito dias antes do casamento, ele desceu à mina e nunca mais voltou". Então o ânimo de todos à volta foi tomado de tristeza e lágrimas, ao ver como a noiva de outrora tinha as feições murchas e sem viço da velhice e o noivo conservava sua beleza juvenil; e como, depois de cinqüenta anos, tornava a despertar nela a chama do amor juvenil, sem que ele abrisse a boca para sorrir ou os olhos para reconhecê-la; e como finalmente ela, a única a conhecê-lo e a ter direitos sobre ele, finalmente pediu aos mineiros que o levassem até a sua casinha, enquanto preparavam o túmulo no cemitério. No dia seguinte, quando o túmulo ficou pronto no cemitério e os mineiros vieram buscar o moço, ela abriu uma caixinha, tirou para ele o lenço de seda negra e barra vermelha e o acompanhou em seus trajes domingueiros, como se fosse dia de casamento e não de enterro. E no cemitério, quando o deitaram no túmulo, ela disse: "Durma em paz, mais um dia ou dez, no frio leito de núpcias, e não se aborreça. Tenho pouco a fazer, venho logo, e logo será um novo dia". "O que a terra devolveu, ela não tira outra vez", disse ainda, afastando-se, e olhou uma vez mais para trás.
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sábado, 11 de julho de 2009

enquetes pilosas

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Em 1963, aos 77 anos, Manuel Bandeira cortou-se fazendo a barba. Para disfarçar a ferida sob o nariz, decidiu deixar crescer o bigode. Acabou se afeiçoando ao amigo piloso e resolveu promover um plebiscito para ver se devia ou não "renunciar ao acréscimo fisionômico".

A polêmica dividiu a intelectualidade da época. "Não conheço o bigode de Bandeira, mas sou contra", rebelou-se o acadêmico Viriato Correia. "Bandeira não deve prejudicar com um feio bigode o seu aspecto sempre jovial. Além do mais, bigode é mais uma complicação para a vida do indivíduo", opinou o acadêmico Ivan Lins. "Admiro os dois estilos de Bandeira", ponderou Josué Montello. Para a poeta Eduarda Duvivier, o bigode caiu bem ao escritor. "Além disso bigode impõe respeito", disse. Pedro Bloch defendeu a liberdade de escolha do poeta: "Manuel Bandeira é dono do próprio nariz e adjacências". No ano passado, antes da Flip, a Folha perguntou ao Xico Sá, ao Michel Laub, a Adriana Lunardi, Contardo Calligaris, Vanessa Barbara e para mim o que era a literatura para cada um. Aqui, os depoimentos.
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quinta-feira, 18 de junho de 2009

você está sozinho

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"For many years I had been lonely.
Then many people visited.
I’d have been happy if they’d stayed.
You are alone, was what they said."

Attila József, trecho de "And So I've Found My Native Country", 1937
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sexta-feira, 12 de junho de 2009

adorável sputnik

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Praça do Patriarca
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Praça da Sé
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Marginal Pinheiros
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Viaduto Santa Ifigênia
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Avenida Juscelino Kubitscheck
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Cassio Vasconcellos, Noturnos, 1988/2003
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segunda-feira, 11 de maio de 2009

dia da marmota

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No mês passado, editei um volume de contos do Vila-Matas, Suicídios exemplares -- “um livro respeitado até por meus inimigos”, de acordo com o catalão. Em um dos e-mails trocados por causa de dúvidas de tradução etc, Vila-Matas comenta o efeito Dia da Marmota:

"Chris Shaw — há muitos anos o engenheiro de som preferido de Bob Dylan — conta que um dia, no fim de um show, se aproximou de Dylan e, referindo-se à interpretação de 'It’s Alright Ma' que acabara de ouvir, quis saber se alguma vez o músico tinha voltado a tocar a versão original da música. Dylan o olhou e disse: 'Bom, você sabe, um disco não é mais que o registro do que você estava fazendo naquela hora, naquele dia particular. E ninguém gostaria de viver o mesmo dia outra vez, não?' Isso me faz pensar não só na necessidade que sempre tive de modificar tudo o que se apresenta como original, mas também na angústia que sinto quando alguém me fala sobre um livro que publiquei há muito tempo [Suicídios exemplares é de 1991]. Volta e meia isso acontece quando um romance é lançado em um outro país e preciso aparecer em público, como se tivesse acabado de escrevê-lo e, além disso, assinar em baixo de tudo que foi dito ali, há tanto tempo, no livro. A gente escreve é precisamente pelo motivo contrário, para modificar os originais, para não viver o mesmo dia outras vezes."
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quarta-feira, 6 de maio de 2009

deve ter acontecido

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"O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido"

Adilia Lopes, Um jogo bastante perigoso, 1985
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segunda-feira, 20 de abril de 2009

millennium people

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David Lamelas, The violent tapes of 1975 (1975)
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"People don't like themselves today... We tolerate everything, but we know that liberal values are designed to make us passive... We're deeply self-centred but can't cope with the idea of our finite selves. We believe in progress and the power of reason, but are haunted by the darker sides of human nature. We're obsessed with sex, but fear the sexual imagination and have to be protected by huge taboos."
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(J.G. Ballard, 1930-2009, em Millennium People)
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Jean-Luc Godard, Alphaville, 1965
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sábado, 18 de abril de 2009

não se finja de morto, pedale

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Conto que a Vanessa e eu escrevemos juntos, em 2003.

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Vibrafone

Olha, vamos esperar, juntos.

Perde a mão no meu cabelo e ouve o chiado, a vitrola e como se arrastam intermináveis os mistérios às quatro da manhã. Ainda mais quando se trata do sumiço de um vibrafone numa música que não chega nunca. O jeito é esperar, fecha os olhos, pode. Se você dormir, tudo bem, e não se preocupa quanto ao disco: vai estar aí, girando e girando depois mesmo. Ele não acaba, começa sempre de novo e de novo - num tempo infinito, todas as coisas do mundo (um número desmedido embora finito de coisas) alcançam o maior número de permutações possíveis, e se repetem milhares de vezes, como uma canção que nunca acaba ou então que não começa. Nunca.

Ai, o leite no fogo.

Da sala pra cozinha, no trajeto, a imagem da Bessie Smith ainda palpita na cabeça: essa mulher berra muito, deitada, de olhos fechados. O trombone pergunta, uma vez mais, e tem o peso da câmera lenta, faz "Empty Bed Blues" ser uma das mais bonitas do disco. Bessie responde, jogada num quarto sem cantos, perto da mesa do centro, com aquela voz de pato com laranja.

Uma sujeira, o fogão está um nojo, agora o cheiro de leite por toda casa, e o chão gelado. Preciso de meias de lã, grito na direção da sala. Quando escutei "Baby Doll" pela primeira vez, pensei na Bessie repetindo o refrão e olhando pra mim com cara de cachorrinho pidão; então eu desembrulhava um baby doll (de seda, cor-de-rosa) e jogava pra ela. Como se fosse parar de resmungar só porque ganhou um maldito baby doll - eu sei, é estúpido.

Segura a xícara com cuidado, tá quente. Eu sei, é estúpido. Mas penso nisso até hoje: é como aquelas fixações insólitas dos adesivos da bicicleta e da menina do pirulito. Nunca te falei?

Espera, olha: acho que a música do vibrafone está chegando. [...] Hm, não. Mas não deve demorar. Senta direito pra tomar o teu leite, enquanto isso vou te contando: as fixações, aquelas minúcias que grudam na memória durante décadas e décadas.

No circo, quando pequena, eu ficava encarando sempre um adesivo perto dos trailers, grudado num vidro da janela ao lado do banheiro feminino, onde estava escrito assim: "Não se finja de morto, pedale". E tinha o desenho de uma bicicleta, embaixo. Por mil demônios: você não sabe o quanto sou obcecada por esse adesivo até hoje. Escuta, será que é agora? Não: é só o trombone que voltou, digo, um frio por dentro.

Também não consigo desgrudar da vez - lá em 1986 - que passei me equilibrando numa faixa azul riscada com tinta no quintal de casa. Penso nisso e, depois, sempre, num trapézio, "Grooving High", canção 7, essa. Não, não é a do vibrafone. Olha, algumas escalas e notas e contratempos rolando e dando de cara com a gata que afia as unhas debaixo da mesa. A gata, gatinha, gatucha. Engole uma frase longa de trompete, engasga e provoca um tsunami no sofá.

Solo de bateria - espera, vamos esperar.

Uma vida que começasse assim, que comece sempre. Que seja toda hora interrompida, pá - e comece de novo. É livre quem não construiu nada. Ou quem jogou tudo fora, pro alto. Repete, repete gatinha, eu não quero as vidas anteriores, eu não quero, eu não.

Agora, a fixação mais desgraçada é a da "menina que chupava pirulito sem camisa". É obsessão pra uma vida toda. Era um grafite que ficava na esquina da Paulista com a Brigadeiro, lado Jardins, colado a uma barraquinha de cachorro-quente. Ora, alguém desenhou uma menina que chupava pirulito sem camisa e escreveu embaixo: "a menina que chupava pirulito sem camisa". Céus. Mas não existe mais, nem o grafite nem a barraquinha. Destruíram tudo.

Acho que é dessas coisas idiotas que a gente mais se lembra - o que é muito triste, porque seria mil vezes melhor recordar o rosto de alguém importante, ou uma viagem perfeita. Mas não: a gente lembra de um certo dia em que comeu um pudim e depois assistiu tevê, ou do dia em que foi andar de bicicleta na rua e não aconteceu absolutamente nada de especial. Todo mundo se lembra de como, num dia muito claro, puxou a bicicleta pra cima dos degraus, direitinho, e sentiu no rosto aquele sol absurdo.

O jeito é esperar. Porque o vibrafone sumiu pra valer. A gente precisa resolver isso. O nome da música é "Save It Pretty Mama". Li de novo o encarte. Estava lá: Lionel Hampton tateando o ar com o vibrafone em "Save It Pretty Mama". Escutei umas duzentas vezes. Juro, não estou brincando, sumiram com o vibrafone. Não está lá. Logo ele, o vibrafone. E logo o Lionel Hampton, pai do vibrafone - embora criasse também outros filhos, pois se atrevia ao piano. Desenvolveu a técnica de tocar com apenas dois dedos da mão direita; a mesma técnica, aliás patética, que ficaria famosa nos filmes dos Irmãos Marx, e que me influenciou no manuseio da máquina de escrever. Eu não sei quem é o culpado, não sei quem roubou o vibrafone do meu disco, mas tenho lá minhas suspeitas. Foi um homem vestido de palhaço. Pronto, falei. Pode rir - tempo para dar risada e fazer piadas sobre minha terrível situação. [...] Os palhaços me vigiam por toda parte, chegam sempre para me lembrar de que não estou sozinha. Sempre que olho de relance pra trás é como se visse um deles, como se mordessem a minha nuca.

Começou, acho, às vésperas do meu quinto aniversário, quando alguém inventou que eu precisava de uma festa com palhaço. Estava tão bem com o guaraná e as empadinhas, minha mania de apostar corrida, de jogar damas comigo mesma. Não queria um palhaço.

E eu que não fiz nada. Nunca incomodei ninguém. Nunca ameacei as forças cósmicas, o Feng Shui, a astrologia, os Illuminati ou as plantações de aspargos. No mês passado, só para citar um exemplo, estava virando a esquina de uma rua em Florianópolis e dei de cara com um palhaço. Você devia ficar orgulhoso: eu nem gritei, não fiz escândalo nem saí correndo. Se eu morresse naquela hora, e me encontrassem caída no asfalto com os braços em forma de L, estaria impressa nos meus olhos a face risonha do maldito palhaço. Juro, era desses de verdade, que colocam a cara bem no seu nariz e sorriem, com a maquiagem borrada. Lápis no olho. Corri. Corri.

E cheguei aqui, nesta música sem o vibrafone.

Liguei para a distribuidora, e me garantiram: o vibrafone está aí. Insisti, disse que a faixa "Save It Pretty Mama" do meu disco não tinha o maldito vibrafone. Que tinha escutado um milhão de vezes e que não, o vibrafone não existia. Foram categóricos: a gravação, de 1939, era famosa justamente por causa do vibrafone. Fica mais um pouco. Quero te mostrar que o vibrafone, que deveria estar, não está aí. Confia em mim. Eu sei, minhas olheiras. Os dentes, minhas unhas roídas, as capas dos discos, estou com soluços.

Não vai, eu digo, e tento por um segundo imitar um vibrafone. Meio ridícula, no corredor, e o vibrafone que não chega e não me salva.
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sábado, 21 de março de 2009

pássaro comanda

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"O pássaro é definitivo
por isso não o procuremos:
ele nos elegerá"

Orides Fontela, o primeiro dos "Sete poemas sobre o pássaro"
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sábado, 14 de março de 2009

100 metros rasos responder pesquisas

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Maratona de pesquisas na piauí deste mês.
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Quiz show
O centro de São Paulo é o lugar onde mais se pergunta no Brasil

Na sala picotada por divisórias, no primeiro andar de um prédio da Rua Sete de Abril, em São Paulo, uma mulher confessa que sim, tem o hábito de usar desodorizadores de ar. Embaixo, nas calçadas, homens de terno e homens-placa seguem na lida, sem desconfiar que naquele local está sendo escrito mais um capítulo — modesto mas não por isso desprezível — do capitalismo pátrio: na pequena sala, está em marcha uma pesquisa que definirá o futuro dos rótulos da marca B de desodorizadores de ar.

“A senhora usa o desodorizador uma, duas ou mais vezes por dia?”, pergunta X, de prancheta na mão. “Só uma vez”, responde a mulher. Registrada a informação, X mostra um frasco do produto, quer saber se ela considera a embalagem jovial. Sim, considera jovial. “É uma embalagem divertida?”, avança X. A interrogada empaca. Inclina o pescoço para um lado, para o outro, tenta avaliar o grau de divertibilidade do arranjo floral estampado no rótulo. Com certo esforço de abstração, concede: “Olha, acho que é divertida sim.” A investigação se aprofunda. A pesquisa quer saber, em uma escala de zero a dez, quão “atraente”, “acolhedora” e “coerente com a marca” é a embalagem do desodorizador. Deve ainda revelar se a mulher: “a) Definitivamente compraria este produto; b) Provavelmente compraria; c) Talvez comprasse; d) Provavelmente não compraria; ou e) Definitivamente não compraria”.

X, de 40 anos, pesquisador há dez, encerra o trabalho, agradece. A mulher desocupa a cadeira e, levando a agenda que ganhou de brinde, volta para as ruas.

O centro de São Paulo é o lugar onde mais se pergunta no Brasil. Na Rua 24 de Maio, não longe do QG do desodorizador, questões são levantadas a respeito da barra de cereal. O procedimento é o mesmo, o pesquisador intercepta um passante e o convida a subir a uma sala alugada, onde o referido cidadão provará uma barra de cereal para emitir opiniões sobre textura e crocância do produto. O intuito é comparar a barra C com a barra D, a dos concorrentes. Coco é o sabor em questão. Duzentos metros adiante, milita a turma do sabor banana com chocolate.

Y — sendo as pesquisas confidenciais, os pesquisadores preferem manter o nome em sigilo — precisa captar jovens “de 20 a 25 anos classe B”. Na pesquisa das barras de cereal, ganhando 8 reais por questionário respondido, Y faz em média 60 reais por dia. O valor por questionário pode chegar a 15 reais, dependendo do cliente que encomendou a pesquisa. Não é um trabalho fácil. Além de os transeuntes estarem sempre com pressa e sem paciência, certas variáveis demográficas são difíceis de cercar (a turma das barras de cereal precisou de um dia inteiro para conseguir o que faltava para eles naquele dia: um jovem de 20 anos classe A no centro de São Paulo). Y tem experiência. Já trabalhou em pesquisas sobre sabão em pó, tampa de iogurte, cueca e se orgulha de ter entrevistado o empresário Antonio Ermirio de Moraes em um trabalho a respeito de óleos e graxas. “Uma vez”, ela conta, “pesquisei sobre vasos sanitários para saber o que as pessoas achavam da caixa acoplada. Uma mulher quebrou a unha no botão da descarga e o cliente decidiu repensar o design.”

De acordo com Silvia Almeida, gerente de operações do Ibope Inteligência, que pesquisa consumo, marca e opinião pública, só para entrevistas por telefone a empresa empregou cerca de 300 pessoas entre setembro e dezembro de 2008 — e perguntou-se de tudo, como se não houvesse amanhã: O senhor tem perfil em algum site de relacionamento? Compra produtos em promoção? Em qual marca de sabão em pó a senhora mais confia? O Ibope Mídia, que mede audiência de rádio, jornal, televisão e internet, faz cerca de 1240 entrevistas diariamente, em onze estados. São cerca de 400 mil entrevistas e milhões de perguntas por ano. Segundo Dora Câmara, diretora comercial, 20% das entrevistas são repetidas posteriormente, para identificar distorções e garantir a fidedignidade da informação.

Na calçada da 24 de Maio, Y confidencia que ali perto, no número 342 da Sete de Abril, cidadãos estariam sendo submetidos a uma bateria de perguntas sobre “frutas amarelas”. Mais à frente, uma jovem comanda a enquete sobre aparelhos odontológicos. A poucas quadras, na direção da Xavier de Toledo, estão perguntando sobre leite. “Tem gente aqui no Centro que sobrevive de pesquisa”, diz um entrevistador. “Só aceitam responder porque damos o copo de leite.”

Na saída da estação República do metrô, as perguntas são sobre salgadinhos (sabor queijo, presunto e cebola e salsa). De prancheta na mão, uma entrevistadora comenta que não é novata em pesquisa de alimentos. Uma das pesquisas que fez foi sobre pirulitos. "Eu perguntava em que momento do dia a pessoa costumava chupar pirulito", diz. "Nunca é fácil".
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sexta-feira, 13 de março de 2009

segue o baile

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Algumas pessoas me pediram a trilha sonora do livro siamês.

É só baixar, aqui. As canciones são as seguintes:

1. Louis Armstrong - "Potato Head Blues"
2. Architecture in Helsinki - "The Cemetery"
3. The Killers - "Mr. Brightside"
4. Clap Your Hands And Say Yeah -
"The Skin Of My Yellow Country Teeth"
5. Jefferson Airplane - "White Rabbit"
6. Current 93 - "All The Pretty Little Horses"
7. Robert Johnson - "They're Red Hot"
8. Csokolon - "Amari Szi Amari"
9. Chopin - "Valse Brillante"
10. My Bloody Valentine - "When You Sleep"
11. Beirut - "Elephant Gun"
12. Nino Rota - "È Arrivato Zampano"
13. Charlie Parker - "I Got Rhythm"
14. Mario Lanza - "The Donkey Serenade"
15. Tom Waits - "Downtown Train"
16. The Who - "Cut My Hair"
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domingo, 25 de janeiro de 2009

problemas da vista

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"— O senhor não ama com ternura o rei dos búlgaros?
— De modo algum, pois nunca o vi."

(Cândido, do Voltaire)
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"É um homem mau, que vem procurar as crianças que não querem ir pra cama. Joga punhados de areia em seus olhos, que tombam ensangüentados, e os apanha, os enfia numa bolsa, e os carrega para a lua para alimentar seus netinhos. Eles estão lá, empoleirados em seu ninho, com os bicos recurvados como o da coruja. E bicam os olhos das crianças que não são boazinhas."

(Hoffmann; O Homem da Areia)
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"Os olhos são as únicas mãos que vão ficando a alguns de nós."

(conto do Cortázar que não lembro o nome)
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terça-feira, 20 de janeiro de 2009

le cigare ou les femmes?

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O filme que em menos de cinco minutos reúne o (fabuloso) "spinach tennis", uma tonelada de Charlie Parker e a cruel escolha entre o cigarro e as mulheres. (O sopro no coração, Louis Malle, 1971).

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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

waterloo, mas com bexigas

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Na edição deste mês da piauí escrevi um texto sobre o método de preparação de atores da Fátima Toledo. Minha idéia era tentar fazer a ponte entre o trabalho da Fátima e uma espécie de "vontade de verdade" (que é a nossa catapora favorita, basta pensar no sucesso dos reality shows, no atual prestígio dos documentários ou num tipo de realismo vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras). Nesse contexto, acho que o método da Fátima ganha força (não à toa, ela trabalhou na grande maioria dos filmes recentes brasileiros): muitos diretores não querem atores que "atuem", mas sim que "vivam" as cenas, o que contribuiria para um certo "efeito de real". A reportagem tenta mostrar os caminhos que a Fátima Toledo toma para criar, a partir do trabalho com os atores, essa "impressão de autenticidade" e como ela vincula isso a uma idéia de "verdade".

Aí vai.

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Como não ser ator

Na escola de atores de Fátima Toledo, a preparadora de elenco de nove entre cada dez filmes nacionais, é proibido atuar

O curso dura cinco dias, de segunda a sexta, no período da manhã. O aquecimento, baseado na chamada bioenergética, são exercícios de meditação, vitalidade, alongamento e cinco minutos de “cachorrinho”, todos os dias. O “cachorrinho” consiste em ficar de quatro, a língua para fora, respirando, respirando. Um pedaço de guardanapo de papel é posicionado no chão, estrategicamente, para receber as estalactites de saliva. O passo seguinte são quinze minutos de kundalini, “meditação para liberar a energia primal, que está aprisionada”. De olhos vendados, pés ancorados no piso de ardósia, joelhos flexionados, vamos mexendo a pélvis em um vai-e-vem contínuo, para frente, para trás, guiado por sons de cítara, frenético, quase um transe. “Às vezes a kundalini dá enjôo”, diz Fátima Toledo, “ou a pessoa fica excitada. As mulheres podem menstruar antes do tempo. Mas precisamos disso pra destravar o sensorial, relaxar, soltar a barriga, os lábios, ficar inteiro. Porque chegamos aqui aos pedaços.”

Fátima Toledo, a preparadora de elenco que orientou uma centena de atores e não-atores em 35 filmes, entre eles Pixote, Cidade de Deus e Tropa de elite, acende um cigarro. Durante os cinco dias é assim. Ela aparece no fim do aquecimento (conduzido por um assistente), quando os colchonetes azuis estão sendo empilhados, e acende um cigarro. A escola fica em um sobrado no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. Fátima chega, é séria, tem cerca de 1,60 m de altura, o cabelo curto e toma café, usa uma calça preta larga, blusa cinza, havaiana dourada e acende outro cigarro. O primeiro dia do curso é um papo, uma introdução ao método.

“Para o tipo de trabalho que vamos fazer, o artifício da atuação é um mal.” Fátima Toledo tem a voz rouca. “Neste método, não existe a idéia de personagem. Aqui, o que vale é a verdade de cada um. No cinema verdadeiro, a pessoa não deve pensar em criar personagem, tem que viver realmente a situação. São situações fictícias, não somos nós, mas também não é um personagem, porque estamos ali, vivendo aquilo tudo. Depois do ‘corta’, acabou: o ator volta à sua vida, mas naquele momento é a própria pessoa quem está realmente vivendo aquilo.”

Entre os treze alunos, que ouvem tudo sem piscar, tossir nem pegar soluço, estão Simone e Vilma, atrizes que vieram do Rio para o curso; Juliana, cabeleireira; Camila, administradora; Renato, que estudou Relações Internacionais; Itapoã, que se auto-intitula “mecânico corporal”; Adriano e Tatiana, recém-formados em uma escola de teatro; e Angelita, que está ali “para se descobrir”. Fátima Toledo, que pede desculpas, diz que vai acender um cigarro, tem 55 anos e dois cachorros. É alagoana, solteira, foi casada três vezes. Não tem filhos. Chegou a São Paulo aos catorze anos. Antes, por causa da profissão do pai, engenheiro civil do extinto departamento nacional de água e esgoto, morou em Salvador, Brasília, Natal e Fortaleza. Estudou comunicação visual no Mackenzie e freqüentou as aulas do ator e professor russo de teatro Eugênio Kusnet. Sua história no cinema começa em 1981, com Pixote, do diretor Hector Babenco. Na época, tinha 24 anos, queria ser atriz e dava aulas de teatro na Febem.

Para fazer Pixote, Babenco foi algumas vezes à Fundação para o Bem-Estar do Menor, em busca de material para o filme. Em uma das visitas, passando pela porta entreaberta de uma sala, viu uma moça. Uma moça e um grupo de meninos. Uma moça e um grupo de meninos fortes e mal-encarados. “A Fátima fazia um trabalho de terapia ocupacional com meninos-problema da Febem”, recorda Babenco, na sala de sua produtora. “Percebi que ela poderia me ajudar com as crianças do filme.”

De início, Fátima Toledo estudou Stanislavski, procurou no método do ator e diretor russo exercícios para dar aos meninos. A coisa não ia bem. "Era difícil para as crianças, recrutadas depois de uma série de testes em bairros da periferia de São Paulo, se habituarem às idéias de personagem e roteiro", diz. Os prazos começavam a apertar. Fátima decidiu que leriam O pequeno príncipe. Depois, foram ao zoológico, cada um escolheu um bicho, ficaram um mês tentando entender como rasteja a cobra, se o hipopótamo no banho mexe a orelha, os movimentos e o comportamento dos animais. “Ali eu resolvi que não tinha roteiro, ali eu resolvi que não tinha personagem”, conta. A solução foi fazer com que os meninos "fossem eles mesmos, que agissem e falassem da única forma que sabiam e podiam". “Aprendemos que a fala deles muitas vezes é mais completa do que a criada por qualquer roteirista.” O método começava a surgir, não a partir de uma teoria, mas de uma necessidade; era uma solução, prática, para se driblar as dificuldades que se apresentavam.

Para o papel-título, o engraxate Fernando Ramos da Silva foi o escolhido, tinha 12 anos quando fez Pixote. O filme foi indicado ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro em 1982, e alçou o garoto ao estrelato, incluindo um contrato assinado com a Rede Globo. Fernando mudou-se com a família para o Rio. Mas tinha dificuldades para decorar os textos (mal sabia ler), não se adaptou à nova rotina. Voltou para Diadema, envolveu-se em assaltos e aos dezenove anos, em 1987, foi morto por policiais, dentro de casa. “Durante muito tempo me senti responsável pelo Fernando”, diz Fátima Toledo. “A imprensa não o chamava de Fernando, mas de Pixote; pessoas batiam nele, diziam que ele não era o Fernando, mas sim o Pixote. Ele me ligava chorando. Depois, na Globo, alguns atores olhavam torto pra ele, maltratavam.” Fátima conta que com o tempo entendeu que “o destino dele seria o mesmo com ou sem o Pixote”, mas que o filme fez com que Fernando “cumprisse sua missão com um pouco mais de poesia”. A experiência deixou uma lição: “agora, quando estamos fazendo um filme, está claro que não estamos formando atores.”

O curso começa para valer na terça-feira. Fátima acende um cigarro. Inspirada em exercícios de Stella Adler (a única atriz americana treinada pessoalmente por Stanislavski e orientadora de Marlon Brando no início da carreira), a fase inicial é o que Fátima chama de “quem é você”. Camila é uma das primeiras. Levanta e, de olhos fechados, deve completar as frases “eu sou...” e “eu estou...”. Falar sem parar, o que vier à cabeça. Camila respira fundo. “Eu sou... insegura. Inteligente, corajosa. Alta, chata, impaciente. Verdadeira, curiosa, teimosa, apressada, carinhosa. Eu estou... no lugar que eu queria estar”, suspira, pára, começa a chorar, “eu passei por muitas coisas até ser o que eu queria ser!” O choro corta a fala, Fátima Toledo coloca a mão sobre o peito de Camila, diz baixinho: “preciso acreditar mais em mim, preciso ser mais forte”.

Um a um, nós vamos à frente, Fátima Toledo dá novas instruções: “eu amo...”, “eu odeio...”, “eu quero...”. “Paz no mundo, mais arte, educação!”, Vilma grita, no melhor estilo passeata estudantil. Fátima interrompe: “não! Você está mentindo! Essas são coisas impostas, não é verdade, não está em você”. Os alunos se sucedem. “Eu amo... minha mãe, ficar sozinha, ter esperança, ser entendida.” “Eu odeio... rúcula, quando me chamam de psicótico, barata, nhoque, meu pé.” No fim, a mesma mão no peito, a voz baixa, quase um sussurro: “eu preciso ser mais forte, eu preciso me respeitar mais, eu preciso...”. Fátima diz que essa parte do trabalho é uma espécie de diagnóstico. “Vejo se a pessoa é agressiva, medrosa, se sabe pedir, dizer não.” Fátima Toledo conta que “a técnica do método é, antes de mais nada, virar gente”. Esconder-se atrás do personagem é proibido. “O espectador deve enxergar pessoas, não atores. Motivação, subtexto? Não! A cena é um resultado da vivência. O personagem impede que a pessoa viva a situação e descubra o seu próprio depoimento. Stanislavski diz ‘se fosse eu...’; eu digo ‘sou eu’”, enfatiza.

Para ativar os atores, o ator e diretor russo Constantin Stanislavski trabalhava sempre com uma suposição. No livro A preparação do ator, publicado pela primeira vez em 1936, exemplifica: “suponhamos que neste apartamento tenha morado um homem que ficou louco, levaram-no para um hospício. Se ele tivesse fugido e estivesse atrás daquela porta agora, o que é que vocês fariam?”. Para Stanislavski, o “se” atua como uma alavanca que auxilia o ator a “sair do mundo dos fatos, erguendo-o ao reino da imaginação (...) porque a arte é produto da imaginação”. “O segredo do efeito do ‘se’ repousa, antes de tudo, no fato de não empregar o temor ou a força”, escreve. “Pelo contrário, o ‘se’ tranquiliza o ator com sua franqueza e lhe inspira confiança numa situação imaginária.”

Fátima Toledo argumenta que a falha do “se fosse eu” de Stanislavski está na “possibilidade de não ser”. “Há a chance do ator não ser! O ‘eu sou’, por outro lado, desperta o sensorial imediatamente. É real! É como na vida!”, diz, e cita como exemplo a preparação do ator Wagner Moura para o filme Tropa de Elite. “Stanislavski diria ao ator: Se você fosse o capitão Nascimento. Mas isso tiraria a força do personagem”, argumenta. “Hoje em dia não temos mais esta suavidade. As pessoas não estão mais sentindo, ouvindo, não estão vendo. O ‘se’ dá segurança. Quando tiramos o ‘se’, a pessoa toma uma atitude.” Foi o que Fátima Toledo diz ter feito para que Wagner Moura virasse o capitão Nascimento.

Oito alunos estão em pé, são duas filas de quatro. Os da frente, de costas para os de trás, não podem virar. O jogo é: ir ou ficar. Quando a música (meio new age) chegar ao fim, os da frente vão partir, abandonando os de trás. Ou vão permanecer, ficar com o parceiro, que deve se concentrar para não permitir que o companheiro da frente vá embora. Fátima Toledo surge, a voz rouca, anda de um lado para o outro.

Tudo é sério. Durante a aula, Fátima nunca ri. Gesticula: “Quem vai, talvez não volte [pausa dramática]. E se você não for agora, talvez não vá mais. Às vezes as pessoas partem porque a gente deixa, dessa vez, não deixe! [gritando] Ou você olha pra frente e parte, sozinho, ou fica e segue onde está. Os encontros não devem ser salva-vidas! Respeite você, depois ame o outro. Se você não for agora, você não vai nunca mais!” Cinco dos oito participantes choram. Três decidem partir, um fica.

Depois de Pixote, Fátima Toledo ficou dez anos longe do cinema. Foi trabalhar no departamento de marketing do banco Itaú, onde seu tio era gerente. No início dos anos 90, porém, Hector Babenco voltou a cruzar o seu caminho. “Você conhece índio?”, perguntou, com o sotaque argentino. Fátima nunca tinha visto um índio na vida. “Então vai pro Pará”. Era o início de Brincando nos campos do Senhor. Fátima ficou dois meses vivendo em uma aldeia. O trabalho não diferia muito do que havia feito em Pixote (exceto as picadas de mosquito). Saem as crianças, entram os índios. O desafio era parecido: fazer com que alguém que jamais houvesse pisado em um set, pudesse representar. Pouco depois, em 1991, foi convidada para fazer Medicine man (no Brasil, O curandeiro da selva), dirigido por John McTiernan, com Sean Connery e Lorraine Bracco como protagonistas e José Wilker em um papel secundário. Devia, novamente, preparar um grupo de índios, fazê-los atuar. “Não tinha personagem, eram os índios mesmo”, conta.

Em Brincando nos campos do Senhor e Medicine man, Fátima Toledo entendeu que estava “levantando cenas”. Todo o trabalho com os índios era feito na aldeia, mas Fátima não sabia se conseguiria o mesmo efeito quando fosse para valer, na frente do diretor. Então, ensaiava as cenas com os índios, e neste processo percebeu que nasciam situações e intenções que não estavam no roteiro. Babenco e McTiernan deram espaço e Fátima começou a realizar o que hoje desempenha com regularidade, o “levantamento de cenas”. “O trabalho do coach norte-americano é bem diferente”, ressalta Fátima. Nos EUA, muitos atores têm o seu próprio coach, ou então o preparador é contratado para ajudar o ator a superar problemas como montar a cavalo, aprender um sotaque ou plantar bananeira. “Preparação como a da Fátima é uma invenção brasileira”, afirma Christian Duuvoort, que também prepara atores (tem um método chamado “o ator imaginário”) e foi responsável por treinar parte do elenco de Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles.

“Hoje, tenho espaço pra discutir aspectos do roteiro, os meus atores podem criar cenas que não estão no roteiro”, diz Fátima. “O Brasil me deu essa possibilidade. Lá fora, é difícil o preparador ir para o set.”

Fátima Toledo conta que no roteiro original de Casa de Alice, do diretor Chico Teixeira, havia uma cena em que uma personagem se refugia na área de serviço e prepara um veneno para dar à adolescente que está de caso com o seu marido. Depois, no que seria uma reviravolta interna, desiste de dar o veneno. “Pra quê?”, Fátima questiona. “Vai ser um caminho complicado. Mostrar alguém que pensou em matar e desistiu. Por que tudo isso? Por que essa pessoa não explode de uma vez e não coloca toda sua dor em cima da outra personagem?” Teixeira concordou em eliminar a cena do envenenamento. “Não é que estivesse mal-escrita, é que levantando a gente vê que não funciona”, diz Fátima.

Ela fala que não tem condições de levantar todas as cenas de um filme. Por isso, os diretores entregam a ela uma lista das que consideram as mais importantes. Muitas são levantadas na própria escola, na Vila Mariana. Quando estão prontas, Fátima Toledo chama o diretor. Ele faz ajustes, corrige, dá o tom, muda a marcação. Antes de rodar, ela vai ao set com o diretor e os atores, ainda sem a câmera, e repassam as cenas.

O primeiro cigarro do dia tem um gosto especial. A caixa de Free está no batente, Fátima Toledo se apóia na janela e bate as cinzas. Olha para os alunos. O curso, que custa 1200 reais, simula as etapas do trabalho de Fátima em um filme. É uma miniatura do método. Começa com o “quem é você”; passa por exercícios que trabalham idéias como a partida, o amor, o abandono, o ódio, a dor (sentimentos e situações arquetípicos, segundo Fátima); e culmina no “levantamento de cenas”. Estamos na quarta-feira e Fátima avisa que precisa de um pouco mais de “quem é você”. Para conhecer melhor a turma. Diz não estar satisfeita. As pessoas estão muito defensivas, precisam mostrar mais verdade!

Um grupo de alunos vai à frente e Fátima distribui bexigas. Cada aluno recebe três bexigas. Deve encher cada uma delas com um sonho, algo importante, que se queira muito, realmente sério. É preciso cuidar desse sonho, não deixar que ele escape. É preciso mantê-lo por perto e nas mãos. Você tem lutado por ele? Alguns abraçam as bexigas, acariciam; outros equilibram na ponta dos dedos; Juliana faz embaixadinha. A bexiga de Camila estoura. Ela começa a chorar.

Um outro grupo de alunos observa, espera para atacar.

O exército recebeu instruções secretas para, quando for dado o sinal, correr e estourar os sonhos dos colegas. Os soldados se preparam, alongam, estalam os dedos, o pescoço. Angelita, vaidosa, pergunta: “meu nariz está sujo?”. Olham fixamente para o flanco inimigo, onde se ninam bexigas, sonhos crescem e tudo é colorido e mágico. Fátima Toledo abre espaço para o pelotão e grita: “Vai!”. O que se vê então é a maior batalha desde Waterloo, só que com bexigas coloridas. Angelita é implacável, não deixa sobrar nada, esmaga os sonhos verdes, os vermelhos, trucida (com as unhas) os amarelos. Tiros espoucam. A guerra é sangrenta.

Entre os escombros, um farrapo de sonho (laranja) agoniza. Ao fim do ataque, Angelita faz um balanço da ofensiva. “Sobre os sonhos da minha colega”, diz, “eu vi que ela estava ali, com todo cuidado, com o balãozinho dela, eu fui assim e tipo cheguei na vida dela e pá, estourei. Ela olhou pra mim e não teve ação, senti no olhar, consegui enxergar dentro dela, lá no fundo, que ela teve raiva, mas não conseguiu pôr pra fora, sabe.” Comandante Fátima é taxativa: “Você não ajudou!”. Angelita abaixa a cabeça, estica entre os dedos um pedaço de sonho, dos azuis, e suspira: “Mas eu tentei...” Fátima Toledo busca o que chama de “verdade”: “Às vezes, a pessoa não está habituada a reagir. Na vida, nos submetemos a muitas coisas. Você falava [fazendo voz de idiota]: ‘eu destruí seu sonho, eu destruí seu sonho’, e ria. O correto seria [gritando]: ‘eu destruí seu sonho, caralho! Reage! Pelamordedeus bate em mim! Faz alguma coisa comigo, porra! Você viu o que eu fiz com você? Quer que eu faça de novo?’ Você tinha que ter ajudado a pessoa a reagir.”

Angelita encolhe os ombros, diz: “É que, sabe, eu tenho essa coisa de sorrir, eu sorrio muito, mesmo quando estou sentindo raiva, eu sorrio”.

Em 2002, com Cidade de Deus, Fátima Toledo ganhou fama. Para o diretor Fernando Meirelles, não há diferença entre o trabalho de Fátima Toledo e o de um coach tradicional. “Os coachs trabalham sempre em áreas específicas”, diz. “O tom da interpretação, o ritmo das cenas e tudo mais é decidido pelo diretor. Sempre. Lá fora e aqui.” Em O jardineiro fiel, Meirelles decidiu não usar um preparador porque, diz ele, se tratava de um elenco experiente. Ensaio sobre a cegueira teve uma preparação para todos os extras que interpretariam cegos. “O elenco principal também participou, mas eram exercícios para ajudá-los a se habituarem a fazer movimentos sem enxergar, não envolvia cenas do filme”, conta.

“Em Cidade de Deus, Fátima trabalhou por três semanas com os personagens principais, sobretudo nas cenas dramáticas”, lembra Meirelles. “Ela veio para arrancar de cada um deles o máximo de emoção possível, sempre com aquela intensidade típica da Fátima.”

Na sala de aula, Vilma toma um tapa na cara. Juliano segura Vilma pelo rosto e diz “sim”, ela responde “não”. “Sim”, “não”, “sim”. Juliano dá outro tapa. Vilma insiste, “não”. “Sim!”. Vilma chora, “nããão!”, soluça. Fátima anda ao redor, “você foi ferida, usa essa força.” Vilma tenta escapar “não!”, Juliano aperta o rosto de Vilma, “siiim!”.

Cada diretor tem uma forma de se relacionar com o tipo de preparação que Fátima Toledo propõe. Para cineastas como Sérgio Machado e José Padilha ela é mais do que um “coach tradicional”. “Karim [Ainouz], eu e o Walter [Salles] estamos muito interessados neste tipo de atuação”, comenta Machado. “Nunca suportei ver uma cena em que percebo que os atores estão atuando. Tenho ojeriza a isso, faz com que eu me lembre que estou vendo um filme e não vivendo uma experiência.” Em Tropa de Elite, de José Padilha, muitas das cenas dramáticas nasceram da interação de Fátima com os atores. Nos extras do DVD do filme, Padilha diz: “A Fátima é uma pessoa intuitiva, talvez haja uma técnica profunda por trás disso. Eu não sei porque eu não entendo.”

Machado conta que quando fez Cidade Baixa percebeu que Fátima Toledo estava lá para “ajudá-lo com o filme que queria fazer”. “Não se trata de uma terceirização do trabalho do diretor”, diz. “Ela me ajudou a chegar onde eu queria.” O cineasta lembra da experiência em Cidade Baixa. “Foi marcante. A intensidade da Fátima contagiou todo mundo”, recorda. “Quando a Fátima queria fragilizar a Alice [Braga], fazia um trabalho de pressão, colocava uma pessoa deitada em cima dela. Eu tinha na equipe um maquinista que era lutador de jiu-jitsu. Ele ajudava, ficava em cima da Alice, que começava a chorar de um jeito... A Alice ali, com as roupas pequenas da personagem, tentava se mexer, o maquinista a imobilizava, ela chorava, se fragilizava. Tudo no maior respeito. Aquilo era muito comovente. A Alice estava ali chorando, se entregando, isso fez com que toda a equipe também se entregasse. É por isso que no Cidade Baixa o espectador vê uma paixão tão grande.”

Fátima Toledo diz que vem reduzindo suas idas ao set porque, acredita, “este é o momento da direção”. Diz que os diretores quando a procuram buscam “o prazer de dirigir, de pegar atores que estão livres, sem atuar, soltos e entregues, prontos para serem usados pelo diretor.”

Bruno Barreto, no entanto, interrompeu um trabalho com Fátima (no recém-lançado Última parada 174, candidato brasileiro a uma das vagas da disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro) por acreditar que seu método acaba diminuindo os espaços de criação do diretor. “O maior prazer que tenho ao filmar é dirigir o ator. Ele tinha que vir preparado, mas não pronto. Com a Fátima, ele vem quase pronto. O diretor pode intervir muito pouco”, afirma.

Por telefone, Barreto diz que para ele os ensaios com os atores são muito importantes. “É quando a dramaturgia começa a sair do papel e ganhar vida. Respeito o trabalho da Fátima, mas levantar cenas é um momento crucial. Isso deve ser feito pelo diretor, não por outra pessoa”, comenta. “Acho que o modo como se conduz os atores imprime uma marca nos filmes. Bergman, Antonioni, Nelson Pereira. Os atores têm funções distintas para cada um destes cineastas.” Na opinião de Barreto, “não é preciso transformar o ator em um farrapo humano para que ele renda bem”. “Nem sempre a verdade é verossímil. Tem ator que chora facilmente, mas isso não significa que vamos ter uma boa cena”, fala, ecoando o que Stanislavski escreve em A preparação do ator: “nem toda espécie de verdade pode transferir-se ao palco”, anota o diretor russo. “Há atores que se impõe uma obediência tão severa à verdade que, muitas vezes, sem o saberem, levam isso a tais extremos que se tornam falsos. O ator não deve exagerar a preferência pela verdade e a aversão pelas mentiras, porque isso o leva a exagerar sua atuação da verdade, apenas pela verdade, e isto, por si só, já é a pior das mentiras. O ator deve ser frio, imparcial. Precisamos da verdade até o ponto em que podemos acreditar nela.”

Durante as entrevistas de seleção de pessoas para viverem os personagens de Última parada 174, Barreto diz ter acontecido algo que o incomodou. “Nos vídeos de seleção, os candidatos se apresentavam, um a um. O assistente da Fátima, fora do quadro, perguntava o nome, a idade, porque o candidato estava ali etc. Num dos vídeos, lá pelas tantas, a voz dizia: ‘na verdade, aqui é a polícia, sabemos que você está envolvido com drogas’. A pessoa tomava um susto. Tremia, apavorada. Então, a voz dizia que era mentira, que aquilo fazia parte do teste. Isso me incomodou, é brincar um pouco demais com a cabeça das pessoas”, fala.

Fátima Toledo nega o episódio. “Essa acusação é de uma irresponsabilidade cruel”, diz. “Quero que ele prove, mostre essa fita.”

Para Hector Babenco, “Fátima impõe um modelo de atuação que é marca dela e no qual o diretor, vampiristicamente, absorve os resultados”. “Ela injeta auto-confiança nos não-atores. No Pixote, isso foi importante para que os meninos se relacionassem de igual para igual com a gente.”

Nos filmes que dirige, Babenco diz achar interessante que alguém faça um trabalho anterior, de relaxamento, para “despir os atores da casca de ator”. “Mas não quero ninguém ensaiando o meu ator”, diz. “Vou moldando o filme de acordo com o que o ator vai me entregando, por isso este momento de ficar junto do ator é fundamental.” Babenco acredita que no cinema nacional, hoje, o preparador de elenco virou uma função tão corriqueira quanto a de um diretor de arte, maquiador, continuísta. “Os diretores não conseguem mais conceber um filme sem essa função”, comenta. “Em O passado, fiquei mais de dois meses trabalhando com o Gael [García Bernal]. As atrizes foram escolhidas a partir de ensaios com ele. Não cresci brincando com uma câmera de vídeo, comecei trabalhando em teatro, minha formação vem de trabalhar com os atores.”

Carlos Reichenbach, que trabalhou com Fátima Toledo em Dois córregos e Garotas do ABC, diz que o preparador se torna indispensável quando o diretor opta por trabalhar com não-atores. “O coach estimula o essencial em qualquer ator estreiante: concentração e disciplina.” Mas fala que nem sempre “os atores profissionais gostam de se submeter ao treinamento do preparador”. Exemplo disso é o “manifesto” que o ator Pedro Cardoso divulgou no último Festival de Cinema do Rio. Nele, Cardoso criticava uma certa perda de autonomia do ator e questionava a opção de diretores em trabalhar com preparadores de elenco. Dizia que “o haver agora no mercado desses amestradores de atores faz parte da desautorização do ator como autor do seu próprio trabalho”. “Quer dizer que nem o seu próprio trabalho é o ator que faz?!”, ironizou Cardoso.

Sergio Machado, por telefone, enfatiza que Karim Ainouz e ele não têm nenhum interesse em trabalhar com atores que a princípio rejeitam o método de Fátima Toledo. “Tem ator que chega e fala: ‘se for com a Fátima, eu não faço’. Então eu digo: ‘até mais, amigo’. Como se a Fátima tivesse rompido algum contrato social, tivesse feito algo eticamente muito irresponsável”, defende Karim Ainouz. “A Fátima nos dá atores à flor da pele. Quando se está à flor da pele, é mais fácil ficar alegre, ficar triste. A pessoa fica disponível, grita e chora mais facilmente.” Ainouz tem dúvidas, no entanto, se o método funcionaria em uma comédia. “Não acho que serve para isso. Mas tenho curiosidade em saber como a Fernanda Montenegro trabalharia com a Fátima.”

O ator e diretor de teatro Mario Bortolotto se diz completamente contra o método. “Ela pega não-ator, faz os caras repetirem o que fazem na vida real, parece que é trabalho de ator, mas não é”, fala. “Quando pega ator de verdade, faz os caras sofrerem pra render uma coisa que eles poderiam render só com o trabalho deles. Não tenho nada contra não-ator, o que eu não quero é submeter o cara a uma tortura psicológica pra conseguir o resultado. Vejo os atores reclamando muito, mas não fazem isso publicamente porque ela virou uma grife. É uma pessoa forte no cinema nacional, então ninguém fala mal, senão não vai ser chamado pro próximo filme.” Bortolotto diz que o que mais gosta quando está atuando é “brincar de ser e não ser de verdade”. “A Fátima Toledo faz você acreditar que está vivendo as situações pra valer. Ela tira toda a graça da brincadeira”, diz. “Sem falar que ela trabalha muito a coisa do improviso, né? O roteiro é praticamente ignorado em prol de uma suposta espontaneidade do tipo ‘falem com suas próprias palavras’.”

Para o diretor Antunes Filho, do Centro de Pesquisas Teatrais, os atores dos filmes nacionais “fazem bem a ação externa”. “Mas e a ação interna?”, questiona. “Posso induzir você a chorar, mas isso não quer dizer que você seja ator. Estou utilizando você de forma domesticada." Antunes acredita que o cinema nacional, hoje, é um cinema de denúncia, "mas uma denúncia estática”. “No fundo do olho de um personagem submetido à miséria, não consigo ver esperança", argumenta. "É só relato, manchete. A tristeza é estereotipada, chapada. Não é só dizer que o homem está esmagado, fodido. É preciso ver no homem alguma esperança, ver que o homem está predisposto a sorrir.”

No mesmo ano em que Cidade de Deus chegou aos cinemas, em 2002, foi lançado Desmundo, de Alain Fresnot. Nele, Fátima Toledo preparou a atriz Simone Spoladore. Em um dos principais exercícios propostos por Fátima, Simone tinha que ficar dentro de um quadrado de fita crepe, vendada, durante horas. “Parti de uma cena do roteiro, em que a personagem é presa em um porão. Eu precisava buscar esse sentimento de prisão”, argumenta. “Queria ver como a Simone reagiria. O ator não imagina que aquele quadrado é o porão, não sabe o que estou fazendo.”

Em tempo: Fátima Toledo não costuma dar os diálogos do roteiro para os atores lerem (em Tropa de Elite, nenhum dos atores recebeu o roteiro com os diálogos. O roteiro com as situações da trama não foi dado a André Ramiro, mas Wagner Moura recebeu. Em O céu de Suely e Cidade Baixa, os atores leram o roteiro, mas sem os diálogos). “Se o ator sabe”, Fátima defende, “ele começa a atuar. Quero que venha à tona a loucura da própria pessoa. É a prisão da própria Simone que vai preencher o filme. Quando o ator olha pra referência de prisão que tem, ele começa a construir. Agora, se você fica dentro do quadrado, sem fazer nada, vendado, tem uma hora que você grita: ‘que porra é essa, me tira daqui, vai tomar no cu!’. Quero que a prisão se torne algo físico.”

O procedimento de não dar o roteiro para os atores é comum nas preparações do diretor britânico Mike Leigh, de Segredos e mentiras (1996). O que difere é que Leigh é o diretor, e é a partir do trabalho com os atores que a trama será construída. Leigh se vale desta interação para erguer não apenas os personagens, mas o filme como um todo. “Mike Leigh nunca escreve uma linha de roteiro”, diz o cineasta e pesquisador Mauro Bapstista, que levou aos palcos A festa de Abigaiu, de Mike Leigh. “Ele seleciona um grupo de atores e tem em mente apenas uma idéia sobre o filme, ou às vezes nem isso. Aluga uma locação por cerca de seis meses, e começa a se reunir separadamente com cada ator, a conversar, a criar os personagens.” Baptista explica que estes personagens tem que ter uma âncora em alguém que o ator conheça. Depois, o ator lê livros que o personagem leria, vê filmes, vai a locações, pesquisa o trabalho do personagem. “Aos poucos, os atores começam a interagir, mas com uma regra: não podem falar para os outros sobre seus personagens”, conta. “Dos outros personagens, os atores vão saber só o que acontece nos ensaios. Aos poucos, Leigh vai criando relações entre os atores, até que depois de um longo processo, de ensaios de dez a doze horas diárias, seleciona algumas cenas e as dispõe em uma ordem. Nunca escreve. Com a dramaturgia fechada, vai filmar em 35mm. Na hora de rodar, não existe improviso, tudo já está decidido. A idéia de personagem é central. O trabalho do ator é duplo, de criação do personagem e de performance.”

Fátima Toledo diz que para cada situação usa uma estratégia. “Às vezes, o ator precisa do meu carinho, daí eu dou minha distância. Às vezes, quer minha distância, dou meu carinho.” Para a atriz Carla Ribas, de Casa de Alice, o caminho foi o da distância. “Eu dizia: ‘como você é chata, você é muito chata, pára de chorar, muito ruim trabalhar com você’.” Fátima acende um cigarro, conta que fazia isso porque Carla precisava entrar no universo de Casa de Alice: “o mundo da periferia, do abandono”. “Quero a pessoa vulnerável”, diz. “Mas não é psicologia. O método é estritamente físico, não quero saber da vida da pessoa.”

O método criado por Fátima Toledo parece ganhar força em um contexto, que para Ilana Feldman, pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, “é caracterizado pelo apelo cada vez mais intenso à produção e dramatização da realidade, quando a linguagem desapareceria como construção para surgir confundida com as coisas, quando é o próprio ‘real’ que parece falar”. Feldman lembra que em 2007 os documentários constituíram cerca de metade dos lançamentos de filmes nacionais. E cita os reality shows, como O Aprendiz e Big Brother, as imagens amadoras nos telejornais (como forma de validar a “verdade” da notícia), o cartaz do filme Tropa de Elite que dizia “uma guerra tem muitas versões, esta é a verdadeira”, “além do boom de um certo realismo vinculado à impressão de autenticidade das imagens amadoras” (flagras, vídeos no YouTube). Segundo a pesquisadora, a busca é por “um espetáculo que simule sua não-encenação, cujo efeito almejado seria a produção de uma impressão de autenticidade e de um valor de verdade que sejam tomados como inequívocos e inquestionáveis.” O “não atuar”, evocado por Fátima Toledo, contribuiria para essa impressão de autenticidade nos filmes.

O cineasta Karim Aïnouz, que trabalhou com Fátima Toledo em O Céu de Suely e mais recentemente na minissérie para televisão Alice (em parceria com Sergio Machado), pensa que essa busca tem a ver com a teledramaturgia nacional, e com o modelo de interpretação dos atores de televisão. “A novela é tão distante da verdade que, no cinema, os diretores e espectadores acabam tendo uma avidez por experiências físicas reais”, ele diz. “Por isso, o trabalho da Fátima é importante.”

Mas, para Ilana Feldman, também a produção televisiva “tem sabido incorporar e desenvolver os cada vez mais intensos e eficazes efeitos de real”. “Roberto Irineu Marinho disse que a Globo ‘de fábrica de produção de sonhos’, teria passado a ser ‘uma usina de realidades’. É nosso desafio”, comenta a pesquisadora, “problematizar e suspeitar de um certo atual valor de mercado que um tipo de ‘realismo-naturalista’ tem adquirido, suspeitar deste regime cuja principal estratégia é produzir um ‘realismo’ que, inversamente, o ‘desrealiza’ e despolitiza, no momento em que tenta simular um suposto acesso direto à experiência dita real.”

Em uma seqüência de Linha de passe, de Walter Salles, um motoboy em fuga seqüestra um carro, desses grandes, blindados, dirigido por um homem rico, de terno. Ambos estão apavorados por razões distintas. Antes de libertar o homem, o motoboy diz aos gritos para que o seqüestrado olhe para ele. “Olha pra mim, olha pra mim!”, berra o ator.

Os gritos de “olha pra mim” surgiram em um exercício proposto por Fátima Toledo. “É o exercício de ser olhado”, conta. “O Walter transformou em cena.” Segundo ela, “hoje em dia, o espectador está anestesiado, em transe”, e precisa ser acordado. “Os gritos tiram o homem engravatado e o espectador desse transe, dessa anestesia e faz com que olhem para si mesmos.” Walter Salles, que também a contratou para Central do Brasil, considera que um elenco preparado por Fátima Toledo adquire “uma densidade” rara. “Nenhum ator mente. Todos passam a habitar os seus personagens de forma visceral”, afirma. “Ela potencializa o que está no papel. Basta ver os filmes e atores premiados nos últimos anos no Brasil. Fátima está quase sempre por trás deles.”

Em 2010, Fátima Toledo espera se lançar como diretora com um longa cujo título provisório é Sobre a verdade. Verdade, que para Fátima Toledo “não é apenas uma forma de trabalhar, mas de viver”. “É poder dizer ‘eu amo’ sem medo de dizer ‘eu amo’”, afirma. “Muita gente fala: ‘você é uma pessoa intensa’. Não é que eu seja intensa, é que eu vivo na verdade, digo o que tenho que dizer, faço o que tenho que fazer, e a verdade para a maioria das pessoas tem a ver com intensidade.”

Na sexta-feira, último dia do curso, algumas cenas são levantadas. A primeira é de O céu de Suely, com as alunas Angelita, Tatiana e Simone. A segunda é do filme Cidade Baixa. Os alunos Adriano e Itapoã se enfrentam em um braço de ferro. Fátima Toledo tenta trabalhar exercícios de atração e repulsão. No filme, os personagens de Wagner Moura e Lázaro Ramos são amigos, mas brigam e disputam a mesma mulher. Itapoã perde o braço de ferro. Na cena, preparada na sala, nos fundos da casa na Vila Mariana, Adriano está dormindo, tem uma arma (de plástico) embaixo do travesseiro. Itapoã precisa demovê-lo da idéia de matar alguém. Brigam, caem no chão, Itapoã tenta pegar a arma. Adriano se defende. Fátima Toledo grita “corta!”, comenta que Adriano “atuou”, que ainda há um pouco de atuação ali e que isso a afastou dele.

No mesmo dia, uma das alunas, Juliana, não aparece, desistiu do curso. Na véspera, Vilma e ela tentaram apresentar a cena de O céu de Suely em que duas personagens se abraçam e se beijam, na cama. “Travei”, conta a aspirante a atriz, depois, por telefone. “Tentei levar adiante, mas acho que não ficou legal.” Juliana lamenta ter desistido do curso. “Eu devia ter ido no último dia, acabei ficando sem o diploma.”
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