"Outro dia, lembrei-me de uma vez em que você veio aqui e, logo que chegou, pôs-se a vasculhar todos os armários à procura de um tapete sardo que queria pendurar na parede do seu porão. Deve ter sido a última vez que o vi. Eu estava nesta casa havia poucos dias. Era novembro. Você zanzava pelos aposentos e vasculhava todos os armários, que tinham acabado de montar, e eu andava atrás de você, me queixando de que você sempre levava embora os meus objetos. Você deve ter encontrado o tal tapete sardo, porque aqui ele não está. Também não estava no porão. De qualquer modo, pouco me importa aquele tapete, como pouco me importava na época. Lembro-me dele talvez por estar ligado à última vez em que o vi. Lembro que, ao ficar brava e protestar com você, senti uma grande alegria. Sabia que meus protestos suscitariam em você um misto de alegria e aborrecimento.
Penso agora que esse era um dia feliz. Mas, infelizmente, é raro reconhecer os momentos felizes enquanto estamos passando por eles. Nós os reconhecemos, em geral, só à distância. Para mim a felicidade estava em protestar e para você em vasculhar os meus armários. Também devo dizer que perdemos naquele dia um tempo precioso. Poderíamos nos ter sentado e interrogado reciprocamente sobre coisas essenciais. É provável que seríamos menos felizes, ou melhor, seríamos talvez muito infelizes. Porém, eu agora lembrarei esse dia não como um vago dia feliz, e sim como um dia verdadeiro e essencial para mim e para você, destinado a iluminar a sua e a minha pessoa, que sempre trocaram palavras de natureza inferior, jamais palavras claras e necessárias, ao contrário, palavras cinzentas, gentis, flutuantes e inúteis."
Caro Michele, Natalia Ginzburg, trad. Homero Freitas de Andrade
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