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Então você conta uma história a si mesma. Ela fica ali por umas horas, se fixando. Primeiro, parece que a história poderia ter sido contada de um outro jeito. Mas logo você se surpreende com a ideia de que não, talvez não exista nenhum outro jeito de contar aquilo. Você bem que tentou, você tentou, sim. Alguns dias se passam e agora, para dizer a verdade, você não quer contar a história de nenhum outro jeito que não exatamente aquele. A história encontrou sua forma. Você olha para ela, como se olhasse para um buraco negro, e diz: bem, não vamos mudar nada por aqui. É o tipo de história confusa. Só você sabe o quanto custou. É melhor tocar a vida e cuidar para que o significado não se mova, ou pelo menos não se mova muito. Por um tempo, a história segue sendo repetida, quando vem à cabeça, e é preciso admitir que por conta de tanta coisa que foi acontecendo você não tem pensado nela mais tanto assim. Ela se torna uma montanha. Ela se torna uma onda contra a pedra. Quer dizer, às vezes a história volta com sua luz metálica, o brilho de explosão atômica que tanto te assustou no início. Mas você respira, e tudo está no lugar.
Então você conta uma história a si mesma. Ela fica ali por umas horas, se fixando. Primeiro, parece que a história poderia ter sido contada de um outro jeito. Mas logo você se surpreende com a ideia de que não, talvez não exista nenhum outro jeito de contar aquilo. Você bem que tentou, você tentou, sim. Alguns dias se passam e agora, para dizer a verdade, você não quer contar a história de nenhum outro jeito que não exatamente aquele. A história encontrou sua forma. Você olha para ela, como se olhasse para um buraco negro, e diz: bem, não vamos mudar nada por aqui. É o tipo de história confusa. Só você sabe o quanto custou. É melhor tocar a vida e cuidar para que o significado não se mova, ou pelo menos não se mova muito. Por um tempo, a história segue sendo repetida, quando vem à cabeça, e é preciso admitir que por conta de tanta coisa que foi acontecendo você não tem pensado nela mais tanto assim. Ela se torna uma montanha. Ela se torna uma onda contra a pedra. Quer dizer, às vezes a história volta com sua luz metálica, o brilho de explosão atômica que tanto te assustou no início. Mas você respira, e tudo está no lugar.
Você toma um copo de leite, come uma banana, dá mais uma volta na chave da porta. A história começa a ficar para trás. Semanas passam. A vida tem o seu ritmo, afinal. Mas um dia você acorda um pouco estranha, é um dia igual a todos os outros, você está tomando café na mesa da cozinha, e é mais uma sensação, como se alguém tivesse tirado uma chapa da sua cabeça. Como se alguém tivesse acendido uma luz muito forte de repente.
Aos poucos você entende que a montanha, aquela montanha, uma velha conhecida, por um segundo ela agora é uma outra coisa. Uma lona cobrindo máquinas e ferramentas na garagem? Você não sabe muito bem. E tudo fica assim, incerto. São dias, semanas. Há um incômodo. Você tenta se organizar. Mas alguma coisa na história, quando você pensa, faz seu coração tremer. É como se por cima dela agora houvesse uma lâmina transparente. A história é a mesma, mas entre você e ela existe alguma outra coisa.
Uma tarde, você deixa o carro num estacionamento e caminha através de uma praça até a rua onde fica a casa da história. Você precisa procurar. Fazia tempo que você não passava por ali. Mudou muito. Quando reconhece enfim a casa, você busca a história e tenta contá-la mais uma vez. Há um prazer um pouco falso nisso, a história se reveste de um ar remoto, deslocado. Na sua superfície agora você distingue manchas. Riscos, um granulado que parece a neve. Mas não é a neve. A história está sendo distorcida pelo calor, pela luz, pelo barulho da rua? Ou é você que está agindo sobre ela. Ecos, uma noite de ano-novo, bicicletas, o mar.
Embora seja exatamente a mesma, a história não se parece muito mais com aquela que você contou um dia a si mesma. A história se combinou também a outras histórias recuperadas pela própria história, e começa a ser difícil separá-las umas das outras, entender onde uma começa e termina a outra. Elas vão se sobrepondo. Isso se torna um problema, ou pelo menos é um problema quando você tenta reordenar aquilo. Você contou a história tantas vezes para si mesma. Não é possível que agora não possa mais. É como se a história escorresse, borrasse… e de repente você pensa, não sem assombro: o que era mesmo aquela história que existiu por tanto tempo? Você não sabe mais o que te levou a contá-la daquele jeito; nada nela te dá segurança. Você coloca a palma da mão sobre a chama de um isqueiro. Você rega a jabuticabeira do quintal. Você faz um barquinho de papel. Você tricota um cachecol, porque o inverno chegou. Na sala, há uma luz mortiça de abajur, uma poltrona, tudo está silencioso. Na cozinha também. Você diz, com raiva, para que todos te ouçam: eu vou dar uma volta! E pega a bolsa, e bate a porta. É tarde, faz frio. No escuro, enquanto caminha, você conta a história para si mesma. Mas a origem e os detalhes se perderam. Há noites no deserto. Há uma noite em que você ajudou um gato a voltar para casa. Há a noite em que você não conseguiu falar e sentiu muito medo. Aquilo tudo fica ali por um tempo, te observando. Você aperta o passo e quando percebe, você está chorando. Mas você não deveria estar chorando. É preciso encontrar um jeito de contar a história. Deve estar aqui em algum lugar.
Conto publicado no blog Entretempos, da Folha de S.Paulo. Fotos do artista japonês Daisuke Yokota.
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