segunda-feira, 8 de julho de 2019

a lebre dourada

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"No coração da tarde, o sol a iluminava como um holocausto nas lâminas da história sagrada. As lebres não são todas iguais, Jacinto, e não era sua pelagem, acredite, que a distinguia das outras lebres, não eram seus olhos de tártaro nem a forma caprichosa de suas orelhas; era algo que ia muito além do que nós, humanos, chamamos de personalidade.

As inumeráveis transmigrações que sua alma tinha sofrido lhe ensinaram a se tornar invisível ou visível nos momentos indicados, para haver cumplicidade com Deus ou com alguns anjos intrépidos. Durante cinco minutos, ao meio-dia, ela detinha-se sempre no mesmo lugar da campina; com as orelhas erguidas, escutava algo.

O ruído ensurdecedor de uma cachoeira capaz de afugentar os pássaros e a crepitação do incêndio de um bosque, que aterroriza as feras mais temerárias, não teriam dilatado tanto seus olhos; o pressentido murmúrio do mundo do qual se lembrava, povoado de animais pré‑históricos, de templos que pareciam árvores ressecadas, de guerras cujos objetivos eram alcançados pelos guerreiros quando os objetivos já eram outros, deixavam‑na mais dona de si e mais sagaz. Um dia parou, como de costume, na hora em que o sol cai vertiginosamente sobre as árvores, sem lhes permitir fazer sombra, e ouviu latidos, não de um cachorro, e sim de muitos, que corriam enlouquecidos pela campina.

Com um salto seco, a lebre cruzou o caminho e começou a correr; os cachorros correram atrás dela confusamente.

— Para onde vamos? — gritava a lebre com a voz trêmula, apressada.

— Até o fim da sua vida — berravam os cães com vozes de cães.

Esta não é uma história para crianças, Jacinto; talvez influenciada por Jorge Alberto Orellana, que tem sete anos e sempre me pede que lhe conte histórias, é que cito as palavras dos cães e da lebre, que o deixam encantado. Sabemos que uma lebre pode ser cúmplice de Deus e dos anjos, se permanecer muda diante de interlocutores mudos.

Os cachorros não eram maus, mas tinham jurado alcançar a lebre com a única intenção de matá‑la. A lebre adentrou um bosque, onde as folhas estalavam estrepitosamente; cruzou um prado em que o pasto ondulava com suavidade; cruzou um jardim, onde havia quatro estátuas das estações do ano, e um pátio coberto de flores, onde algumas pessoas ao redor de uma mesa tomavam café. As senhoras pousaram as xícaras para ver a carreira desenfreada que, em suas passagens, derrubava a toalha, as laranjas, os cachos de uva, as ameixas, as garrafas de vinho. Na primeira posição estava a lebre, ligeira como uma flecha; na segunda, o cão pila; na terceira, o dinamarquês preto; na quarta, o tigrado grande; na quinta, o pastor; na última, o galgo. Por cinco vezes, a matilha, correndo atrás da lebre, cruzou o pátio e pisou as flores. Na segunda volta, a lebre ocupava a segunda posição e o galgo, sempre em último. Na terceira volta, a lebre ocupava a terceira posição. A carreira seguiu através do pátio; cruzou‑o outras duas vezes, até que a lebre ocupou a última colocação. Os cães corriam com a língua de fora e os olhos entreabertos. Nesse momento começaram a desenhar círculos, maiores ou menores à medida que aceleravam ou diminuíam a marcha. O dinamarquês preto teve tempo de afanar um alfajor ou algo parecido, que manteve na boca até o fim da corrida.

A lebre berrava:

— Não corram tanto, não corram assim. Estamos passeando.

Mas nenhum deles a escutava, porque sua voz era como a voz do vento.

Os cachorros correram tanto que, afinal, caíram desfalecidos, a ponto de morrer, com a língua de fora feito um trapo comprido e vermelho. A lebre, com sua doçura cintilante, aproximou‑se deles levando no focinho trevos úmidos, que pôs sobre a testa de cada um dos cães. Eles voltaram a si.

— Quem colocou água fria em nossa testa? — perguntou o maior deles.

— E por que não nos deu de beber?

— Quem nos acariciou com os bigodes? — disse o menor. — Achei que eram moscas.

— Quem nos lambeu a orelha? — interrogou o mais magro, tremendo.

— Quem salvou nossa vida? — bradou a lebre, olhando para todos os lados.

— Tem algo estranho aqui — disse o cão tigrado, mordendo com minúcia uma das patas.

— Parece que éramos em maior número.

— Será porque estamos cheirando a lebre? — disse o cão pila coçando a orelha. — Não seria a primeira vez.

A lebre estava sentada entre seus inimigos.

Tinha assumido uma postura de cachorro. Em certo momento, até ela duvidou se era um cachorro ou uma lebre.

— Quem será este que está olhando para nós? — perguntou o dinamarquês preto, movendo uma só orelha.

— Nenhum de nós — disse o cão pila, bocejando.

— Seja lá quem for, estou muito cansado para olhar para ele — suspirou o dinamarquês tigrado.

De súbito, ouviram‑se vozes, que chamavam:

— Dragão, Sombra, Ayax, Lurón, Senhor, Ayax.

Os cachorros saíram correndo e a lebre ficou imóvel por um momento, sozinha, em meio à campina. Mexeu o focinho três ou quatro vezes, como se estivesse farejando um objeto afrodisíaco.

Deus, ou algo parecido a Deus, a estava chamando, e a lebre, talvez revelando sua imortalidade, fugiu num salto."

Silvina Ocampo, "A lebre dourada", em A fúria (tradução Livia Deorsola)
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