domingo, 2 de junho de 2019

tudo é uma coisa só

.
No Rascunho, texto do crítico Ricardo Silva sobre o Sebastopol.

 
.
Em 1855 foi publicado o trabalho que seria a base do clássico Guerra e paz, de Liev Tolstói: Contos de Sebastopol. Em três narrativas curtas, o escritor russo destrincha episódios sobre a Guerra da Crimeia em contos cujos títulos eram nominados através dos meses do ano. Esse exercício de abreviada extensão serviu como estrutura fundamental para erigir o volumoso colosso responsável por consagrar seu nome na história da literatura.

Num exercício semelhante, surge Sebastopol, estreia solo do jornalista e escritor Emilio Fraia. Como na obra de Tolstói, o trabalho de Fraia também se divide em três contos cujos títulos são meses do ano.

Três histórias que ecoam entre si, num encontro e desencontro de pontos em comum, e que funcionam como uma sala de espelhos cujos reflexos são sempre indiretos e por vezes distorcidos.

No primeiro relato, "Dezembro", a jovem montanhista Lena conta sua história em tom quase epistolar. A protagonista almeja escalar o topo do mundo, o monte Everest. Este objetivo vira uma obsessão para a jovem e, no decorrer da história, essa obsessão é responsável por transformar sua jornada existencial por completo.

No seu relato aparece a figura de Gino, um cinegrafista que quer alcançar a glória de encontrar as imagens perfeitas. A relação de ambos é retratada por Lena como se esta escrevesse uma carta, num exercício de memória estimulado por um filme de uma estranha e misteriosa realizadora belga, no qual a narradora vê ecos da história de sua vida.

Lena recorda, então, o trágico acidente que lhe acomete na tentativa de vencer seu Moby Dick pessoal. Tudo isso num relato sóbrio e melancólico.

Em "Maio", segunda narrativa, Sebastopol apresenta a história do desaparecimento de Adán, um peruano-brasileiro que some no seio da floresta amazônica brasileira depois de hospedar-se numa pousada semiabandonada.

Este conto, dos três, é o que mais se aproxima da perspectiva fantástica de uma narrativa permeada de mistérios que não precisam ser solucionados. Sua condução é onírica, alucinatória e expõe um escritor que quer brincar com a ideia de memória e do passado, que quando “é esvaziado, quando nos livramos dele, podemos viver outras vidas, encontrar a nossa história nas outras vidas, como se houvesse uma continuidade dos corpos, das consciências”.

O conto termina sem um final definido e tudo fica solto no ar, a espera de uma solução que apenas o leitor pode encontrar (ou não).

Em "Agosto", uma jovem chamada Nadia embarca na produção de uma peça sobre a cidade de Sebastopol e um pintor russo que retratava os soldados da Guerra da Crimeia. Seu parceiro nesta empreitada é Klaus, um dramaturgo notório pelos fracassos de todas as peças que tentou lançar.

Nadia quer poder escrever, desenvolver essa sua expertise. Klaus quer poder apresentar ao mundo uma peça teatral de impacto. O resultado, como esperado para algo lançado num mês de mau agouro como agosto, é que a peça se mostra um fracasso completo e desemboca numa enorme frustração para os protagonistas.

As histórias de Fraia se imiscuem na potência do acaso. A vida não está preocupada em ensinar lições, afinal “ninguém aprende nada com história nenhuma”. Ela é este fluxo contínuo de acontecimentos que ora se aproximam, ora se distanciam, sem maiores explicações, sem a necessidade de explicações.

Sebastopol é um livro carregado de uma sutil tensão melancólica. A condução de Fraia das suas narrativas é madura e tece reflexões poderosas sobre a memória e como as linhas da existência se entrelaçam sem que as compreendamos.

Cada conto mostra-se como a busca de uma nova saída para os dilemas de seus protagonistas. Todos eles, no entanto, desenham e estruturam um cenário maior. Mesmo que diversos, e ainda que levemente divergentes entre si, eles são contados pela mesma voz, como se um narrador onipotente estivesse conduzindo cada narrativa dentro do mesmo tom e ele fosse o real vetor desta macro-história.

A desilusão que aparentemente permeia cada narrativa é sintomática desse pensamento que entremeia, numa fina costura, a ideia de acaso puro e simples, que desemboca em conexões inesperadas. A tentativa de aprender com o passado ou mesmo esvaziá-lo é tentar aprender com o acaso da vida, mas “os acasos da vida não explicam nada, meu irmãozinho, absolutamente nada”. Mas no final de tudo, da vida e desta obra tão potente, é inescapável a sensação de que tudo é uma coisa só. De que tudo vai e retorna com a mesma intensidade, seja nos meandros incognoscíveis da existência ou nas imagens que remontamos incessantemente nos painéis da memória.

O livro de Fraia é um exercício holístico de narrativa literária, desse jogo nietzschiano do eterno retorno que faz malabares com possibilidade da repetição, da ressonância constante das lembranças, das outras existências que passam uma dentro da outra e de como essas passagens desembocam na matéria daquilo que pensamos ser. Tudo está no mesmo universo e integra o mesmo cenário, afinal “as histórias dos homens são uma só”.

Essa sensação, constante do decorrer da leitura, de que as histórias que compõem Sebastopol no final das contas são as narrativas de apenas uma existência, é sempre reforçada pelos sinais espalhados entre os três enredos que indicam essa noção de unidade, de um bloco maciço com três pontos de contato. Afinal, “acho que as pessoas contam sempre as mesmas histórias, mesmo quando tentam contar outras histórias. As histórias são dispostas na nossa frente, como objetos, e vamos percebendo que são feitas da mesma matéria, detritos espaciais, uma massa sólida de pedra e metal”.

Sebastopol é esta escalada que engana com sua aparência de fácil execução, mas que, quando se chega perto do topo, o ar fica rarefeito, um frio percorre a espinha e nos congela. Ao chegar no cume, nos damos por aliviados de ter atravessado aquela jornada, escalado aquela montanha melancólica e solitária sem perceber que, ao fechar o livro, teremos uma tarefa ainda mais árdua e salutar: descer a montanha com aquelas três histórias martelando na nossa mente, sem nos permitir o espaço de fuga. Livros que nos permitem essa experiência nos engrandecem como leitores. Emilio Fraia guarda na sua prosa a energia de um artífice maduro no ofício da escrita. O burilamento do texto, sua necessidade de dizer sem falar, as frases concisas, sem a busca por grandes e eloquentes metáforas, mostram-se ao leitor como elementos de um escritor que tem consciência da responsabilidade que possui com a literatura. Nesta fina costura dos acidentes da memória e do acaso, as ações da vida ressoam e terminam no mais sólido dos silêncios. Sebastopol serve como um manual para saber viver esse momento, pois “as ações na vida não são tantas. E um dia tudo acaba”.
.