domingo, 25 de novembro de 2018

cartões-postais

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Schneider Carpeggiani sobre Sebastopol, no Suplemento Pernambuco:

Tal qual Sísifo, os personagens dos 3 contos a compor Sebastopol (Alfaguara), de Emilio Fraia, tentam levar o rochedo da vida até o alto da montanha, para depois vê-lo rolar precipício abaixo. Se vivências concretas não fazem sentido, a sobrevivência se ganha a partir de um processo de ficcionalização compulsório, do encontro com possíveis “duplos” e da evocação de fantasmas. Sebastopol é uma obra sobre a criação de artifícios. A sobrevivência como exercício atrelado à criação de artifícios.

Faz todo o sentido, assim, que a cidade russa que nomeia o livro apareça não como acidente geográfico propriamente dito, e, sim, como um fajuto cartão-postal – mas um cartão-postal daqueles que enviamos para nós mesmos, por falta de destinatário ou de viagens reais.

O importante é recriar e assim ir seguindo.

No primeiro conto, uma garota reconta o acidente que sofreu ao tentar ser a esportista mais jovem a escalar o Everest – “porque escalar dá sentido à sua vida, e é disso que no fundo as pessoas precisam, Lena, eu sempre me digo isso, as pessoas precisam acreditar em alguma coisa”, lembra a narradora, Lena, de um conselho ouvido de uma amiga sobre o banal da sua motivação esportiva. O trauma da escalada, no entanto, é ressignificado quando ela assiste ao vídeo de uma artista gringa que parece contar a história da sua tragédia com a precisão do avesso do avesso típica dos espelhos, mas ainda assim sua história. No segundo, o dono de uma pousada decadente no meio do nada procura um hóspede desaparecido, mas o procura sabidamente em vão pelo fundo de uma piscina cheia de lodo que já viveu dias melhores – lembremos que piscinas são o “cartão-postal” das águas, mais um lembrete da coleção de artifícios que o livro se propõe a compilar. No último dos contos, a frustração dos primeiros anos no mercado de trabalho leva uma garota a se aproximar de um diretor de teatro, que divide seu tempo entre espetáculos que jamais irão para frente e o tesão em stalkear desconhecidos pelas ruas, colando neles suas fantasias escapistas. Cada uma dessas ficções recebeu o nome de um mês do ano, começando pelo fim, "Dezembro", passando pela metade, "Maio", e encerrando por algo como um "lugar-nenhum", "Agosto" – o mês que persistimos em acreditar como o dos maus presságios, talvez pela falta de uma definição melhor diante de sua localização "perdida" na divisão precária dos calendários.

Sebastopol é o primeiro livro solo de Fraia, que já havia feito O verão do Chibo (em parceria com Vanessa Barbara), e a graphic novel Campo em branco (com DW Ritbatski). Em sua nova estreia, mostra-se exímio na criação de uma atmosfera de mistério que toma as rédeas da atenção do leitor. O mistério do qual falamos não necessariamente implica resolução de algum caso ou de um grande segredo a ser revelado. Os mistérios aqui são os fios soltos e desconectados, que insistimos em amarrar diante de fatos que nada teriam de especiais por si só. É que precisamos criar uma mística qualquer, para lidar com o banal de corpos que se quebram, de memórias que acreditamos apenas como nossas de tão intensas e do súbito de pessoas que entram na nossa vida e, puf!, se vão.

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Igor Zahir, na revista Bravo!:

Em 2014, quando eu era um jovem jornalista perambulando pelos bares underground de São Paulo, achava que era aquele clima melancólico das noites no Centro que me fazia lembrar de situações (nem sempre agradáveis) que me levaram até ali. Hoje, ainda jornalista, — mas não tão jovem — , me dividindo entre uma cidade de 26 mil habitantes em cima de uma serra e a famosa Caruaru que fica ao lado, a mesma sensação ainda bate com frequência desconfortante. Certos arrependimentos de atitudes do passado; a vontade de ter feito diferente. Memórias que não podem ser desfeitas ou apagadas, e que desenharam meu destino desde a capital paulista, passando pelo período sabático, até o retorno para minha terra natal.

Ao ler Sebastopol, livro que marca a estreia solo de Emilio Fraia (coautor do romance O verão do Chibo, com Vanessa Barbara, e da graphic novel Campo em branco, com DW Ribatski), percebi que os personagens dele passam pela mesma coisa. Cada um em estágio diferente, com sua história pessoal, nos três contos narrados na obra.

No primeiro conto, "Dezembro", Lena almeja se tornar a mais jovem brasileira a “alcançar o cume dos montes mais altos de cada um dos sete continentes”, mas sofre um acidente no Everest. Tendo que lidar com as consequências (físicas e mentais) daquele trauma, ela tenta refazer sua vida. Até que, anos depois, ela dá de cara com um vídeo que reativa todas aquelas cenas, desde muito antes do acidente, até o fatídico dia. Como recomeçar após ter tantas lembranças dolorosas novamente latentes na cabeça?

No segundo conto, "Maio", Nilo é o proprietário de uma pousada rural caindo aos pedaços entre a fértil vegetação da fazenda ao lado; mas a pacata rotina do anfitrião perde o sossego quando um hóspede desaparece após discutir com sua esposa. Passado e presente da vida de ambos se entrelaçam para dar algum sentido ao enredo.

Em "Agosto", o último conto, Nadia deixa o emprego frustrante num museu para ser aprendiz de um dramaturgo aparentemente fracassado. Juntos, eles vão escrever uma peça sobre o pintor Bogdan Trúnov na cidade russa de Sebastopol. Paralelo a isso, Nadia cria uma outra história e faz seus próprios julgamentos sobre sua jornada e a vida de Klaus, o dramaturgo que enxerga possíveis protagonistas em garotos sarados duvidosos.

Nadia é, evidentemente, um retrato de muitas pessoas da sua geração. Vários pontos provocam uma identificação, como a crise existencial num emprego que não tem perspectiva de carreira; a necessidade de fazer algo que tenha um propósito, mesmo que para isso vá ganhar bem menos financeiramente no trabalho com um artista decadente; o escapismo por vezes tão inevitável pra quem vive — ou se refugia — na selva de pedras. Como uma ode à Sampa de Caetano, que fala sobre a dura poesia concreta das esquinas. “E quem vem de outro sonho feliz de cidade, aprende depressa a chamar-te de realidade”.

Entretanto, vale ressaltar o que foi falado no início: os contos de Sebastopol poderiam se passar em qualquer lugar. Na metrópole que cheira a capitalismo. Na zona rural de uma casa em ruínas. Na própria cidade russa que inspirou o nome ao autor. É um livro sobre os traumas da trajetória humana, e como eles influenciam no nosso presente e futuro. Sobre o passado que todos adoraríamos não ter vivido, e como precisamos lidar com ele (muitas vezes com humor e sarcasmo) para dar conta do destino sem entrar em paranoia. E isso, definitivamente, acontece com qualquer pessoa, nos mais diversos cenários do mundo.
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quarta-feira, 14 de novembro de 2018

a lua de sebastopol

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Na Folha de S.Paulo, texto da Fernanda Torres:

Os três contos de Sebastopol, livro de Emilio Fraia lançado pela Alfaguara, contam histórias distintas, unidas, estranhamente, pela mesma sensação de hiato; a promessa de uma vida plena, que se torna insólita, vaga e melancólica. A escaladora que, antes da queda, atinge o topo do mundo; o proprietário rural arruinado que sonhou construir Xangrilá; o diretor de vanguarda que se conformou com o ostracismo; personagens que transitam num limbo chamado presente, cujo passado não lhes pertence mais e o futuro sequer chega a ser ambicionado.

Com uma narrativa impressionista, formada por grandes vazios e fragmentos falhos de memória, Sebastopol traduz a sensação de desencanto, de que algo se perdeu no caminho.

A data do acidente da atleta, mesma da primeira passeata de 2013, dá a pista de que a insidiosa escrita de Fraia aborda, sim, nosso fracasso recente.. Existe uma ligação curiosa entre essa pequena joia literária e O Primeiro Homem, superprodução hollywoodiana sobre a vida de Neil Armstrong, o primeiro astronauta a pisar na Lua.

Assisti ao filme no dia da votação do segundo turno. Exausta da angústia eleitoral, sentei-me na sala de cinema para esquecer. Achei que veria mais uma trama ufanista sobre o triunfo americano, no estilo de Apollo 13 e do superficialíssimo Perdido em Marte. Mas não.

O Primeiro Homem é tão casmurro quanto Sebastopol. Um filme intimista, composto de closes claustrofóbicos e grandes paisagens espaciais.

 Armstrong também vive o seu limbo. Lacônico, o piloto nem se esforça para traduzir em palavras a dor pela perda da filha e o peso da missão impossível imposta pelo destino.

Não há nem gritos nem choros, nem fucks nem fights. A mudez do herói, sua obstinação de engenheiro, a dor de pai -- bem como a solidão da esposa Penélope --, a espera do eterno retorno de Ulisses; tudo se ancora numa atuação sem dós de peito ou ambições de Oscar, vício frequente no cinema americano. O olhar abismado de Gosling para o horizonte curvo da Terra é o mesmo de Claire Foy diante da loucura da vizinha viúva. Seja no espaço sideral ou na vila militar, na cozinha de casa ou na clausura do módulo lunar, o desespero é sempre contido, seco, abafado.

No auge da Guerra Fria e com o mundo em convulsão, o astro da corrida espacial crava a sua pegada na lua graças à capacidade de manter a frieza diante do medo e da morte. A autocontenção é o seu trunfo.

O Primeiro Homem narra a história de um luto. O caráter científico, metódico, americano do herói, transforma em êxito o funeral. O mesmo não ocorre com os brasileiros de Sebastopol. Não há ciência ou método que lhes reparem as perdas, não há sociedade ou cultura capaz de dar ordem ao caos.

Saí do cinema com o novo presidente eleito, sob gritos e rojões de vitória.

Respeito a alegria dos que votaram na crença da retidão e da ética. Temo os meios, mas compreendo o alívio e a raiva. Foi uma escolha consciente, embora envolta em irracionalidade.

Espero que o país se acalme. Que a serenidade de Armstrong sirva de exemplo aos eleitos. Que a sensatez e a moderação que Moro viu em Messias guiem, como que por um milagre do Deus tão presente nessa eleição, a turba atiçada pelo ressentimento, pelo ódio e pelas paixões.

É isso ou a desorientação terminal dos anti-heróis de Sebastopol.
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quarta-feira, 7 de novembro de 2018

uma história esquisita em que não acontece nada

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Na Quatro cinco um deste mês, texto da Marcella Franco:









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Um No mapa, a cidade de Sebastopol se equilibra na ponta de uma península, abraçada pela Ucrânia, Rússia e Crimeia. Tem pouco mais de 300 mil habitantes, e já foi foco de disputa entre soviéticos e alemães nos anos 1940. Agora, Sebastopol dá nome à terceira publicação do escritor paulistano Emilio Fraia, que, pela primeira vez, assina um livro sozinho.

São três partes, com histórias aparentemente independentes e nomeadas com meses do ano. Lena, uma alpinista que sofre um acidente na descida de sua escalada ao Everest, em meados de 2012, é quem abre Sebastopol com “Dezembro”, narrando em primeira pessoa sua relação com o videomaker italiano Gino.

Por ter superado a amputação das pernas, depois de quinze cirurgias e um longo período sem conseguir se olhar no espelho, a atleta se transforma em uma palestrante de sucesso, o que ajuda, de certo modo, a aplacar seu isolamento social – Lena é uma mulher solitária, com poucos amigos, e uma mãe com câncer terminal.

Esta existência segregada parece ser o principal motivo que a leva a entregar não só ela própria, mas também suas valiosas memórias, aos cuidados de Gino, que ganha o poder de usá-las como bem entender. “Fiz o que as pessoas fazem o tempo todo. Contar as histórias, recontá-las, congelá-las, dar sentido a elas”, confessa a si mesma.

Chega “Maio”, e com ele vem Nilo, dono de um sítio onde funcionava uma pousada agora desativada. A exemplo de outros desavisados, o peruano Adán e sua mulher vão parar na propriedade, e, depois do pernoite improvisado, ela parte e ele permanece, estabelecendo uma relação com Nilo. Enquanto de um mal se sabe a história -- em uma tentativa de esquecer o passado, já há anos Nilo escondeu todas as fotografias em uma caixa no porão --, do outro se descobrem nós primitivos que envolvem exílios, sacrifícios e mortes.

É só quando desaparece que Adán, finalmente, ganha acesso às profundezas do amigo -- mas aí já é tarde demais. Enquanto esvazia a água da piscina logo na abertura do conto, o empregado Walter “sacode a cabeça e diz que aquilo não faz o menor sentido”.

“Agosto” é o conto e o mês de Klaus, um diretor de teatro que convida a jovem Nadia para criar uma peça que fala da vida de um famoso pintor russo, morador de uma cidade vizinha a Sebastopol, e que gostava de retratar soldados. A certa altura, enquanto planejam o roteiro do espetáculo, Nadia questiona o autor sobre a decisão de escrever sobre aquela figura.

“Você gosta das pinturas desse cara (...), mas é apenas uma história esquisita em que não acontece nada”, argumenta, enquanto Klaus responde que, no fundo, todas as histórias são esquisitas e também nada acontece. E esta reflexão, sobre o tênue limiar entre a banalidade e o relevante, permeia Sebastopol da primeira à última página, colocando o leitor na posição de advogado da importância dos relatos dos outros e da própria biografia.

Embora até apresentem reviravoltas, os contos de Fraia seguem sempre sem grandes sobressaltos, cultivando uma atmosfera ansiosa, que serve perfeitamente à ideia de envolver, mas sem que para isso sejam necessários quaisquer artifícios exceto o pleno domínio da linguagem e do manejo dos deslocamentos no tempo, bem como de uma cuidadosa narrativa descritiva.

Ao relatar sua vida pregressa, o peruano Adán traça um paralelo entre o papel das ondas como o elemento que serve para sacodir o mar e as tragédias, que vêm para sacodir a vida. Hábil como seu criador, o personagem sabe conduzir mais de uma trama ao mesmo tempo, e, como talvez Fraia também imagine, Adán pensa que “as histórias correm paralelas, sem nunca se encontrar”.

Contudo, ao menos em Sebastopol, as vidas se resvalam, sim, ainda que de modo sutil e quase misterioso. A intersecção pode estar na renúncia do self à qual todos os protagonistas se submetem, ou nas montanhas da escaladora Lena, que, segundo Nilo, são a tentativa humana de estar mais perto dos deuses, algo parecido com o que fazem o teatro e a pintura quando ousam retratar a guerra. Esteja onde estiver o cruzamento, sorte do leitor que se dispuser a galgar o universo de Fraia e tirar sua própria conclusão.
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domingo, 4 de novembro de 2018

nitidez impressionista

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Três leituras de Sebastopol:

“São três narrativas longas que se podem definir pelo paradoxo da ‘nitidez impressionista’: a lembrança fragmentada de um acidente terrível numa escalada do Everest, a busca de um desaparecido numa fazenda decadente e o projeto de uma peça de teatro malograda que une um velho diretor e uma jovem são histórias em que a notação realista precisa serve a um inacabamento de essência; o laço final de sentido sempre nos assombra e sempre nos escapa. Mais ou menos como o Brasil.”

Cristovão Tezza, na Folha

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"São três meses, três contos, três lugares, três ou mais personagens à deriva, três ou mais histórias que precisam ser contadas, três ou mais tempos que se confundem, iluminam-se e perdem-se. ‘Dezembro’ circula entre dois tempos que só na aparência são separados: antes e depois do acidente. A narradora lê a própria história numa história alheia e, para compreender o que há de verdade e de mentira no que vê e naquilo de que lembra, revisita o passado. Se tudo que recordamos, porém, é nublado, como saber qual tempo veio antes, que história foi de fato vivida?. ‘Maio’ insinua uma história, a de Nilo, e em seguida a troca por outra, a de Adán, para, no final, conciliá-las na idêntica tragédia, na idêntica paródia de desfecho incerto e derrota iminente. ‘Agosto’ é costurado pela voz de uma narradora que escreve uma história, participa da escrita de outra e, finalmente, tem que dar conta da vida que vive. Nenhuma escrita ou reescrita a resume e o futuro, tal qual o presente, é um tempo em suspensão. Sebastopol, nome do livro, é uma cidade no mapa, um porto feio, uma miragem, o lugar que deveria nos orientar, mas que não sabemos bem onde fica e qual relação temos ele. É assim com os personagens deste livro. Prosseguem em seus universos íntimos, que aos poucos se desagregam; miram o ponto a que querem chegar, mas, como todo destino, ele é esfumaçado e a memória não oferece maior proteção. Um belo livro, de escrita cuidada e construção delicada."

Julio Pimentel Pinto, Paisagens da crítica

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"A narradora de 'Agosto', último conto deste Sebastopol, está ajudando um diretor decadente a montar uma peça de teatro. Explicando o contexto de existência de Trúnov, pintor russo e objeto da peça, Klaus diz a ela que Sebastopol é um porto no Mar Negro, que por sua vez é como se fosse o ralo do mundo. Olhando numa espécie de quadro geral, talvez seja a melhor imagem para definir o novo livro de Emilio Fraia: escrever os ralos do mundo. Misturando realidade e ficção enquanto recorre a uma narrativa que acolhe, envolve e aperta, porém sem nunca deixar o leitor de fato ir, Emilio Fraia construiu em Sebastopol uma série de fotogramas literários. Como numa filmagem de velocidades distintas, os focos vão se alternando em fluxos nada aleatórios que amplificam zonas de desconforto. A impressão é que Sebastopol dialoga com as frestas. Sejam os travestis do Arouche ou os xerpas nos acampamentos nevados, esquadrinhar o mundo invisível a partir de protagonistas lacônicos é um trunfo. Aqui, ação quase sempre dá lugar à lentidão de personagens maleáveis que se potencializam no contexto em que estão inseridos. Lena, narradora de 'Dezembro', perdeu as pernas num acidente. Sua história se sobrepõe a um vídeo que revela mais do que deveria. Nilo, em 'Maio', está buscando Adán numa piscina no centro-oeste brasileiro. Desaparecido, o estrangeiro assume controle da história e eclipsa a dureza esperada no habitual homens-duros-fazendo-tarefas-duras. Por fim, a Nadia de 'Agosto' embarca numa jornada de autoconhecimento pelas fronteiras de São Paulo. Variando de intensidade, estas três histórias se cruzam no limite da experiência – física e intelectual – daquilo que é ser humano, quase como Fraia puxando o leitor e dizendo: não se preocupe, a coleira está comigo, eles não vão muito longe. Diante da impossibilidade de ajudar quem está condenado a somente existir, resta passear pelas páginas e aproveitar – ainda se fazem bons livros."

Mateus Baldi, Resenha de bolso
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sábado, 3 de novembro de 2018

dormir por anos, acordar de repente

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No Estado, texto da Maria Fernanda Rodrigues + quatro perguntas:







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Um livro de personagens em situações difíceis, de forasteiros, de gente deslocada e de terras estrangeiras e estranhas. Assim Emilio Fraia define Sebastopol, seu terceiro livro – e o primeiro que escreve sozinho – com lançamento nesta terça, 23.

Fraia estreou na literatura em 2008 com O Verão do Chibo, escrito com Vanessa Barbara. Pouco depois, em 2012, ele figurou na Granta – Os 20 Melhores Jovens Autores Brasileiros. Um ano mais tarde, lançou Campo em Branco, graphic novel assinada com DW Ribatski.

Sebastopol traz três contos independentes, mas com temas em comum. "Dezembro" é narrado por Lena, que queria se tornar a mais jovem mulher brasileira a “alcançar o cume dos montes mais altos de cada um dos sete continentes”, ela nos conta. Algo, claro, dá errado. "Maio" é narrado em terceira pessoa e retrata o encontro e o desencontro entre Nilo, dono de uma pousada desativada, e Adán, que pede abrigo no local. "Agosto" volta a ser narrado por uma mulher, Nadia, que deixa o emprego num museu para ajudar um dramaturgo decadente a escrever uma peça sobre um pintor russo enquanto ela mesma tenta escrever uma história.

São personagens às voltas com traumas, tentando dar conta da vida, recordando histórias que preferiam esquecer – que preferiam não ter vivido. Dor física e psíquica, o não dito, o que não está mais lá. “Este é um dos grandes temas: lidar com o invisível. O Roberto Piva dizia, citando o Lorca, que ele era um pulso ferido sondando as coisas do outro lado. Acho uma boa definição para a literatura”, diz Fraia.

Outra questão, comenta o autor, tem a ver com o jeito que contamos as histórias das nossas vidas – para nós mesmos e para os outros. “E como estas histórias tomam o lugar do acontecido, fazendo com que as fronteiras entre o que aconteceu e o que se conta fiquem borradas e, no limite, desapareçam.”

E há também, ressalta, uma desfiguração do tempo nas histórias. “Porque o trauma é uma espécie de tempo que não passa. Não existe um antes e depois. Há um clima melancólico, de falta de esperança, de histórias interrompidas e deixadas pelo caminho. Alguns episódios são apenas aludidos, e os personagens parecem ter dormido por anos e acordado de repente. Algo meio história de terror ou de uma aventura que não se realiza”, comenta.

Sebastopol, o título do livro, remete à maior cidade da Crimeia, palco de um dos mais sangrentos episódios da Guerra da Crimeia no século 19 e anexada à Rússia em 2014, que aparece como um postal no terceiro conto. É um nome estranho que combina com o livro, diz Fraia, que cita ainda obra de Tolstoi. “Contos de Sebastopol narra três momentos distintos desta guerra. Tolstoi esteve lá, viu tudo de perto. Uma história de gente mutilada e de resistência e, de certa forma, isso tem a ver com o livro – e com um sentimento que estamos experimentando agora no Brasil.”

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Como surgiram os contos do livro? O livro surgiu de uma vontade de escrever histórias que funcionassem por si só, cada uma com seu universo, mas que ao mesmo tempo quando colocadas lado a lado pudessem estar conectadas por relações sutis, por um andamento comum. Como se para além da voz da narração de cada um dos contos houvesse uma outra subjetividade, difusa, pairando sobre tudo, e isso criasse um efeito. Uma sensação de diferença (afinal, as histórias são independentes), mas também de proximidade (temas que voltam, um tom comum). Queria que o leitor chegasse ao final e pudesse repassar as histórias em busca destes pontos de contato. Por exemplo: no livro, há sempre alguém que conta, imagina, recorda. E a história contada, imaginada, inventada toma a frente e acaba funcionando como uma espécie de comentário à história principal -- e ao livro também. São histórias simples que começam a ficar complexas.

Por que Sebastopol? É um nome estranho, que combina com o livro. Eu nunca fui a esta cidade, nunca estive na Rússia -- também nunca fui ao Everest, que é onde se passa parte da primeira história. Sebastopol aparece como uma cidade num mapa, uma representação, como um lugar num daqueles jogos de tabuleiro tipo War. As montanhas do Everest surgem quase como um cenário de isopor e papelão. Tudo bastante artificial. Tem algo de irônico nessa escolha também, há muitos livros com nomes de cidades, Berlim, do Joseph Roth, Austerlitz, do Sebald, Budapeste, do Chico Buarque. Sebastopol é uma cidade portuária do Mar Negro, a maior da península da Crimeia. É uma cidade meio híbrida, ucraniana, que em 2014 foi anexada à Rússia. Foi palco na metade do século dezenove de um dos episódios mais sangrentos da Guerra da Crimeia. O primeiro livro do Tolstói, Contos de Sebastopol, narra três momentos desta guerra. O Tolstói esteve lá, viu tudo de perto. É uma história de gente mutilada, de resistência e, de certa forma, isso tem a ver com o livro -- e com um sentimento que estamos experimentando agora no Brasil.

Gino dizia que o que o interessava em suas filmagens era encontrar maneiras novas de mostrar o de sempre. Isso diz respeito também à literatura? Sim, mas a narradora está apaixonada por Gino, então qualquer frase que ele diga soa como algo muito sério e verdadeiro. Ele é uma figura meio pedante, dono de uma produtora, com aspirações artísticas. E a narradora está presa a este cara. Então acho que é verdade e mentira que precisamos encontrar maneiras novas de mostrar o de sempre. Penso nisso também como uma reflexão sobre algumas verdades que volta e meia surgem: é preciso escrever sem muitos advérbios, adjetivos são ruins, não se pode escrever de maneira bonita, é preciso encontrar maneiras novas de contar o de sempre. Tudo verdade. Tudo mentira.

Nadia diz que as pessoas contam sempre as mesmas histórias, mesmo quando tentam contar outras histórias. Adán, que contamos e repetimos as histórias porque temos medo delas, porque este é o nosso pedido de ajuda. Você concorda? Que história é essa que você está tentando contar? Nadia é a personagem mais jovem do livro. Ela está ajudando um diretor de teatro mais velho e meio decadente a escrever uma peça de teatro e ao mesmo tempo tentando escrever uma história dela e, finalmente, precisando dar conta da própria vida -- ela terminou um namoro, isso só se insinua na trama, mas ao mesmo tempo parece estar em tudo o que ela faz. No outro conto, Adán conta a Nilo sua história, seu passado como motorista de táxi em Lima, sua relação com o pai e com o filho. É uma história que ele não gosta de lembrar, mas parece que precisa contar e lembrar. Acho que uma possível questão do livro pode ter a ver com o jeito que contamos as histórias das nossas vidas -- para nós mesmos e para os outros. E como estas histórias tomam o lugar do acontecido, fazendo com que as fronteiras entre o que aconteceu e o que se conta fiquem borradas e, no limite, desapareçam.
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