sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

a orquestra de auschwitz

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Art Spiegelman sobre a orquestra de Auschwitz, em Maus:

"A memória é fugidia. E eu estava ciente disto na época, que era parte do problema e parte do processo. [...] Era óbvio, quando eu fazia a checagem, que a memória de meu pai, Vladek, não fechava com tudo que eu lia. Sabia que em algum momento teria que dizer isto. Houve um período em que foi complicado. E, como geralmente acontece, as coisas mais complicadas levam às soluções mais profundas. Então, perguntei a Vladek especificamente sobre as orquestras em Auschwitz para a cena na página 214. Eu estava tentando descobrir onde ficaria a supressão: será que eu corrijo erros com base na autoridade de outros? Ou ignoro a autoridade de outros e fico estritamente com a memória de Vladek como se fosse um correlato objetivo que podia ser desenhado? É uma questão básica. Fiquei me debatendo com ela por um tempo. Em termos de registro histórico seguro -- ou seja, com várias testemunhas independentes --, minha tendência era triangular o fato e permitir que a memória dele fosse agrupada à memória maior. Mas se havia alguma espécie de razão íntima para ele lembrar de forma errônea -- por ser algo que ele disse especificamente que viu, ou por conta da relevância e peso que aquilo parecia ter na conversa -- eu seguia a versão dele e tentava fazer uma correção visível, quando necessário. Quando mais se aproximava da história dele em particular, menos eu interferia. Mas pensei que deveria haver pelo menos um lugar no livro onde aquele processo ficasse explícito. E a orquestra de Auschwitz é tão bem documentada quanto qualquer outra coisa de Auschwitz. Muitos dos músicos sobreviveram, escreveram suas memórias. Os nazistas tiraram fotos da orquestra. Há tantas descrições de que aquilo aconteceu que eu sabia que não estava caindo no Céu dos negacionistas do Holocausto: "Ah, ele está inventando tudo, espalhando a mentira!" Então, quando questionei Vladek sobre a orquestra e ele não lembrava, pensei: "Ok, vai ser aqui!" Na metade de cima da página 214, aparece a orquestra tocando, os prisioneiros sendo conduzidos em frente a ela, eu faço a pergunta a ele, meu pai para a pensar e diz: "Orquestra? Só lembro de marchar, não de orquestra. Guardas acompanhava nós do portão até oficina. Como podia ter orquestra ali?"




O mais importante aqui era permitir que Vladek dissesse isso -- porque na realidade ele provavelmente não passava pelo portão principal de Auschwitz quando ia trabalhar na oficina. Ele passava por um dos portões laterais, de serviço, e presume-se que não passava marchando pelas orquestras. Ele pode nem ter visto nem ouvido quando entrou no campo pela primeira vez, já que foi trazido num caminhão com outros, não num dos carregamentos de trem. É bem possível que a orquestra não existisse para ele, e não quero negar. Só quero insistir que ela existia, mesmo que ele questione como ela poderia ter existido. Aí eu digo: "Mas está bem documentado". E ele diz: "Não. Só ouvia era as guardas gritando." Que seja, então. Mas da forma como está desenhado é um diálogo visual complexo, pois, A: eu podia ter deixado a coisa toda de fora. B: eu podia apenas fazer ele dizer, na cena no presente, que não lembra de orquestra alguma e não mostrar nada. Mas ao invés disso, enquanto cartunista, optei por C: mostro a orquestra, então faço Vladek dizer que não se lembra dela. Então faço a orquestra ser apagada pelas pessoas marchando, pois é disso que ele lembra. E, enfim -- eu "venço" a discussão, já que fui eu que a armei -- mostro pedacinhos do violoncelo e as silhuetas dos músicos por trás da marcha para insistir que eles existiram. E para arrematar este interlóquio, por conta da minha necessidade compulsiva de fazer coisinhas formais que ninguém vai notar, o pedacinho da parede encoberto pela marcha de prisioneiros vira uma partitura."


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