quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

dois inícios com menina e bicicleta

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"Capurro estava em mangas de camisa, apoiado no parapeito da varanda, vendo como o desbotado sol da tarde levava a sombra de sua cabeça até a beira do caminho que, entre plantas, unia a estrada e a praia ao hotel. A garota pedalava no caminho, perdeu-se atrás de um chalé de telhado suíço, logo depois apareceu de novo, mantendo o ritmo compassado dos pedais, o corpo agora ereto no selim, movendo as pernas com fácil lentidão, com tranquila arrogância, as pernas cobertas com meias cinzas, grossas, lanudas, as pernas que mostravam seus joelhos. Freou a bicicleta rente à sombra da cabeça de Capurro e seu pé direito, afastando-se do veículo, apoiou-se para manter o equilíbrio ao pisar no capim raquítico, meio amarelado, e depois sacudiu os cabelos da testa e olhou para o homem imóvel.

Usava um pulôver escuro e uma saia cor-de-rosa. Fitou-o com calma e atenção, como se a mão bronzeada que afastava os cabelos das sobrancelhas bastasse para velar seu prolongado exame, oferecendo o corpo contra a paisagem que se aplacava na tarde, os dentes no cansaço, os cabelos alvoroçados e aquela luz do suor e da fadiga que recolhia o reflexo do anoitecer para cobrir-se e destacar-se feito máscara fosforecente na penumbra. Depois largou a bicicleta na grama e olhou novamente para ele, enquanto suas mãos tocavam a cintura afundando os polegares sob o cós da saia, então desviou o olhar e perfilou a cabeça, sem seios, ainda ofegante, os olhos voltados para o ponto da tarde onde o sol ia se pôr.

De repente, sentou-se na grama, tirou os sapatos e sacudiu-os, segurando um por um os pés nus nas mãos, friccionando-os e mexendo os dedos curtos, deixando ver por sobre os ombros os pés avermelhados, revirando-se no ar fresco. Calçou-se novamente, levantou-se e ficou, por um momento mais, girando o pedal com golpes rápidos do pé, até repetir seu movimento duro e apressado, então virou-se, com uma expressão desafiante, para o homem que a olhava, o rosto recuando na luz escassa, com um desafio de todo seu corpo desdenhoso, fazendo com que dele participassem o brilho niquelado da bicicleta, as formas e os matizes das árvores, como se tudo que a rodeava fosse segregado por ela. Montou novamente e pedalou atrás das hortênsias, atrás dos bancos pintados de azul. [...]"

"A longa história", Juan Carlos Onetti, 1944

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"Ao entardecer fiquei em mangas de camisa, apesar do estorvo do vento, apoiado no parapeito da varanda do hotel, sozinho. A luz levava a sombra de minha cabeça até a beira do caminho de areia que, entre arbustos, une a estrada e a praia ao casario.

A garota apareceu pedalando no caminho para logo se perder atrás do chalé suíço, vazio, que mantinha o cartaz de letras negras em cima da caixa de correspondência. Era-me impossível não olhar para o cartaz ao menos uma vez por dia; apesar de sua face castigada pelas chuvas, pelas sestas e pelo vento do mar, mostrava um brilho perdurável e exibia: Mi descanso.

Um momento depois a garota surgiu novamente sobre a franja arenosa cercada de mato. Tinha o corpo vertical sobre o selim, movia as pernas com fácil lentidão, com tranquila arrogância, as pernas cobertas com meias cinzas, grossas, lanudas, eriçadas por galhinhos de pinheiro-bravo. Os joelhos eram espantosamente redondos, bem-acabados, em relação à idade que o corpo mostrava.

Freou a bicicleta bem rente à sombra da minha cabeça, e seu pé direito, separando-se do veículo, apoiou-se para manter o equilíbrio ao pisar no curto relvado morto, meio castanho, agora na sombra de meu corpo. Depois afastou os cabelos da testa e olhou-me. Usava um pulôver escuro e uma saia cor-de-rosa. Fitou-me com calma e atenção, como se a mão bronzeada que separava os cabelos das sobrancelhas bastasse para esconder seu exame.

Calculei que nos separavam vinte metros e menos de trinta anos. Descansando nos antebraços, sustentei seu olhar, mudei o local do cachimbo entre os dentes, continuei olhando para ela e para a pesada bicicleta, para as cores de seu corpo esguio contra o fundo da paisagem de árvores e ovelhas que esmaecia na tarde.

Repentinamente triste e enlouquecido, olhei o sorriso que a garota oferecia ao cansaço, os cabelos duros e alvoroçados, o delgado nariz curvo que se movia com a respiração, o ângulo infantil em que os olhos tinham sido impostados no rosto -- e que nada tinha a ver com a idade, já estava ali desde sempre e até a morte --, o excessivo espaço que concediam à esclerótica. Olhei aquela luz do suor e da fadiga que recolhia o último resplendor ou o primeiro do anoitecer para cobrir-se e destacar-se feito máscara fosforecente na escuridão próxima.

A garota largou com suavidade a bicicleta sobre os arbustos e olhou-me novamente enquanto suas mãos tocavam a cintura com os polegares afundados no cinto da saia. Não sei se ela usava cinto; naquele verão todas as garotas usavam cintos largos. Depois olhou ao redor. Agora estava de perfil, com as mãos juntas nas costas, sempre sem seios, respirando ainda com curioso cansaço, o rosto voltado para o ponto da tarde onde o sol ia se pôr. Sentou-se bruscamente no gramado, tirou as sandálias e sacudiu-as; segurou um por um os pés nus nas mãos, friccionando os dedos curtos e movendo-os no ar. Por sobre seus ombros estreitos eu a via agitar os pés sujos e avermelhados. Vi-a esticar as pernas, apanhar um pente e um espelho do grande bolso com monograma colocado sobre o ventre da saia. Penteou-se descuidada, quase sem me olhar.

Calçou-se novamente, levantou-se e ficou por um momento girando o pedal com golpes rápidos do pé. Reiterando um movimento duro e apressado, girou em minha direção, ainda sozinho na varanda, sempre imóvel, fitando-a. O perfume das madressilvas começava a subir e a luz do bar estirou manchas pálidas no gramado, nos espaços de areia e no caminho circular para automóveis que rodeava o terraço.

Era como se já nos tivéssemos visto, como se nos conhecêssemos, como se tivéssemos guardado lembranças agradáveis. Olhou-me com uma expressão desafiante enquanto seu rosto ia se perdendo na luz escassa; olhou-me com um desafio de todo seu corpo desdenhoso, do brilho niquelado da bicicleta, da paisagem com chalé de telhados suíço e ligustros e eucaliptos jovens de troncos leitosos. Foi assim por um segundo; tudo o que a rodeava era segregado por ela e por sua atitude absurda. Montou novamente e pedalou por trás das hortênsias, por trás dos bancos vazios pintados de azul, mais rápida entre as filas de carros diante do hotel."

"A face da desgraça", Juan Carlos Onetti, 1960
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