quinta-feira, 14 de maio de 2015

inclusive quando se nega a fragmentação

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"Em meados de 1999 comprei (ou melhor, paguei em muitíssimas prestações) um desses computadores imensos que funcionavam com o Windows 95, e eu não sei se esse inverno foi tão terrível como o recordo ou se eu não estava agasalhado o suficiente, mas o fato é que adquiri o hábito de aquecer as mãos na CPU e um dia até a enfiei na cama e dormi várias noites abraçado a ela. Gosto desta imagem: um objeto que então parecia muito sofisticado acabava se prestando a um objetivo tão básico como servir de coberta. Anos depois incluí essa anedota em 'Recuerdos de un computador personal', um relato que escrevi com a ideia de mostrar os computadores como objetos de época, como avanços superados. Era uma maneira elíptica, também, de falar das gerações literárias, porque naquela época alguns escritores ainda insistiam no computador como emblema do novo: pensei que tinha graça demonstrar ou pelo menos expressar a obsolescência dessas máquinas (e desses discursos).

Não creio que seja função da literatura imaginar o iPhone 18, mas seria absurdo comportar-se como se as periódicas mudanças tecnológicas experimentadas nos últimos 30 anos não tivessem alterado nossa experiência do mundo, nossa vida cotidiana e nossa forma de escrever.

Os romances mudaram quando começamos a escrevê-los no computador? Claro que sim, mas é necessário ver de que maneira. Diz-se que antes era mais difícil escrever um livro, mas isso é entender a escrita como atividade física, como se o romance fosse melhor quanto mais calorias tivesse perdido o autor ao escrevê-lo... É como quando os críticos não se atrevem a fazer uma resenha negativa de um livro de muitas páginas porque imaginam o grande esforço para escrevê-las. Também se diz que agora é mais fácil ou mais frequente começar escrevendo o final ou qualquer frase do meio, mas a verdade é que nenhum romancista nunca foi obrigado a começar pelo primeiro parágrafo do livro.

Flaubert teria demorado menos cortando e colando como um condenado, maravilhado com esses comandos que permitem procurar e substituir, detectar cacofonias e todo tipo de recorrências, em busca da perfeição? Quem sabe. Por outro lado, é inegável que os processadores de texto sistematizaram a lógica da montagem. Alguns escritores acham que a maneira de ser ou parecer modernos (ou pós-modernos ou pós-pós-modernos) é adotar, em seus textos, estruturas próprias dos blogs, ou dos chats. Mas até nos textos mais conservadores se adivinha a montagem: inclusive quando se nega toda fragmentação, inclusive quando, como faz Jonathan Franzen, se imita o paradigma clássico, o texto deve mais à estética das vanguardas históricas que ao modelo do realismo do século 19. Hoje mais do que nunca o escritor é alguém que constrói sentido juntando pedaços. Cortando, colando e apagando."

Alejandro Zambra, trecho de conferência lida na Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade do Chile, 2013
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