domingo, 14 de setembro de 2014

às vezes eles voltam

.
Escrevi sobre o centenário do Bioy Casares na Folha Ilustríssima da semana.

.




Bioy e Silvina, setembro de 1979

.
Se city tour fosse uma modalidade da crítica, o capítulo portenho poderia começar assim: "A Calle Jorge Luis Borges é imensa, cheia de plátanos e atravessa Palermo. No coração do bairro, que de subúrbio e orilla passou a centro e lugar da moda, está a Plaza Cortázar. Dela saem ruas repletas de bares, restaurantes, lojas de roupa, cafés, livrarias, onde se puede vivenciar la movida joven nocturna y diurna. A Calle Adolfo Bioy Casares é breve, quieta, uma leve descida. Começa e termina num canto da Plaza San Martín de Tours, na Recoleta. Atrás das árvores, fica praticamente invisível".

Nascido em 15 de setembro de 1914, Bioy Casares é essa espécie de fantasma entre seus pares. Suas aparições são sutis, seu estilo é transparente, sem estridência, e sua obra parece estar sempre à sombra. Durante toda a vida, o autor de A Invenção de Morel (1940) foi vinculado a Borges, seu amigo e parceiro literário, com quem escreveu livros, fez traduções e organizou antologias. Ironicamente, essa mística da discrição (e do apagamento) o acompanhou até em seu centenário, obliterado por um outro, o de Julio Cortázar. Na Feira do Livro de Buenos Aires, em maio deste ano, a quantidade de homenagens e lançamentos em torno de Cortázar impressionava. A Bioy restou a exibição de um vídeo triste com trechos de sua obra dramatizados de forma triste numa sala triste em que só podiam entrar três pessoas, evidentemente tristes, por vez.

Diante de tais particularidades e contingências, os caça-fantasmas literários têm tido trabalho dobrado para tirar o autor daquele limbo para onde vão os escritores após a morte. "Ele está em suspenso, esperando ser redescoberto e que lhe façam justiça", diz um entusiasta de sua obra, o escritor argentino Rodrigo Fresán, por telefone, de sua casa em Barcelona. "É preciso que surja uma nova geração que o aborde sem nenhum tipo de preconceito, que consiga observá-lo com alguma distância", clama.

A oportunidade parece estar chegando. Se não propriamente de "justiça" ou ampla "redescoberta" — porque Bioy dará um jeito de desaparecer —, pelo menos de investigar se sua obra ainda tem o poder de assombrar.

Bioy Casares morreu em 8 de março de 1999, aos 84 anos. Em novembro, ele se materializa entre nós com a publicação do primeiro volume de sua Obra Completa (organizada pelo pesquisador e responsável pelo arquivo de Bioy Casares, Daniel Martino), a sair pelo selo Biblioteca Azul, da editora Globo. Nesse tomo está toda sua fase inicial, que vai de A Invenção de Morel (tradução de Sérgio Molina) a O Sonho dos Heróis (1954, tradução de Josely Vianna Baptista) e História Prodigiosa (1956, tradução de Antônio Xerxenesky), passando pelos contos inesquecíveis de A Trama Celeste (1948, tradução de Ari Roitman e Paulina Watch).

Na Argentina, o terceiro volume acaba de chegar às livrarias. Nele figuram Dormir ao Sol (1973), A Aventura de um Fotógrafo em La Plata (1985) e obras que surgiriam depois de o escritor ter sido agraciado com o Prêmio Cervantes, em 1990 — além de Uns Dias no Brasil (2011), que narra suas andanças por São Paulo, pelo Rio e pela recém-nascida Brasília, nos anos 60. Em breve, seus livros ganharão também novas edições de bolso, pela Emecé. E uma exposição, El Lado de la Luz, Bioy Fotógrafo, no Centro Cultural San Martín (a ser inaugurada no dia 28 de setembro), pretende dar conta de suas incursões pela fotografia.

O que sabemos de Bioy, no entanto, não é tudo. Ao lado de sua figura de exímio urdidor de tramas, que rechaçava as narrativas realistas e psicológicas —"mera verossimilhança sem invenção", segundo Borges, no célebre prólogo de A Invenção de Morel —, começa a se produzir agora o holograma de um outro Bioy.

É o pesquisador Ernesto Montequin quem dá forma a tal ectoplasma, entre um café e outro, no El Gato Negro da Avenida Corrientes, Buenos Aires: "O que vem acontecendo com Bioy é algo surpreendente. Sua obra visível, a que temos acesso, é apenas uma parte do todo. Secretamente, ao longo dos anos, ele desenvolveu uma espécie de vida literária paralela".

Montequin se refere aos diários do escritor. De 1949 a 1975, Bioy escreveu-os de forma obsessiva, preenchendo cerca de 120 cadernos. Destes, uma parte foi publicada em 2006 sob o título de Borges — um catatau de 1.650 páginas. Era um projeto de Bioy: sacar de seu diário todas as entradas em que o amigo fosse citado. Em 1990, anunciou que reuniria essas anotações em um livro: nele, surgiria um Borges inesperado, "rindo das coisas que ele mesmo respeitava, falando como um amigo íntimo".

O volume provocou calorosos debates e foi, sem dúvida, um dos principais acontecimentos literários da última década na Argentina — sobre ele, o escritor Alan Pauls diz, por e-mail: "É um texto sensacional, talvez o melhor de Bioy, todavia o menos Bioy de Bioy". Em 2001, surgiu Descanso de Caminantes, que muitos tomam como parte de seus diários mas que foi escrito pós-1975, num esquema diferente, de notas. Para os próximos anos, mais escritos privados de Bioy devem vir à tona.

A aposta de Montequin é de que Bioy será redescoberto e reavaliado à luz dessa nova faceta, de memorialista. "Isso vai mudar profundamente nossa percepção sobre ele", diz o pesquisador, que administrou os direitos da obra do escritor durante seis anos e hoje é responsável pelo arquivo de Silvina Ocampo (1903-1993) —uma das mais brilhantes contistas argentinas, autora de livros como A Fúria (1959), ainda estranhamente inédita no Brasil —, com quem Bioy foi casado por 53 anos.

"Os diários de Bioy não são meramente introspectivos. Bioy sabia que seriam publicados, por isso injetou neles toda sua verve narrativa, apurada ao longo dos anos. Também não têm a ver com o que conhecemos como autoficção. A tradição a que Bioy se filia é outra", afirma Montequin. "Por conta de sua posição social, ele tinha acesso a um mundo muito particular. Seus diários são a história de uma classe, de um tempo, a história de meio século da vida argentina, além de, claro, serem os registros de um dos maiores escritores do século 20."

Em 1949, Montequin destaca, um fato iluminaria o caminho rumo aos diários: Bioy descobre Proust — e passa a se interessar por livros de memórias, entrar em contato com as tradições inglesa e francesa das autobiografias, ir atrás de compilações de cartas. "Ele começa a ler de outra maneira, de um jeito diferente de seus anos iniciais, quando estava mais próximo de Borges."

Isso se cristaliza em 1965, quando, na segunda edição da Antologia da Literatura Fantástica (1940), que compilou com Borges e Silvina Ocampo, Bioy agrega um pós-escrito ao prólogo que fizera para o livro — prólogo este que, conforme registra o crítico Emir Rodriguez Monegal em Borges: uma Poética da Leitura [Perspectiva, R$ 27, 186 págs.], pertence à categoria de "texto fundador". Nele, retifica algumas de suas opiniões. E principalmente: absolve Proust, cuja obra havia comparado, na primeira versão do texto, a um "maço de jornais velhos".

Outra mudança ocorre em relação a Tchékhov. Em entrevista ao escritor argentino Fernando Sorrentino, nos anos 1990, reunida em Siete Conversaciones con Adolfo Bioy Casares [El Ateneo, R$ 42,90, 275 págs.], Bioy diz que "passou a vida desdenhando de Tchékhov porque não havia argumentos em seus contos". "Eu tinha predileção pelas narrativas que contavam histórias", diz. "Mas opinava sem ler, ou tendo lido apenas de forma rápida." Nos anos 1950, depois de voltar a Tchékhov, passa a se sentir próximo a ele, a seu jeito de ser. "Hoje, muitas coisas da psicologia de Tchékhov me são agradáveis. É como se tivesse descoberto um amigo."

Em 11 de novembro de 1955, Alejandra Pizarnik anota sobre Bioy Casares em seu diário: "Escreve muito bem. Mas tem alguma coisa que falha. Ainda não descobri o que é. Talvez não encontre, mas é uma vaga sensação de falta de plenitude".

O sentimento da poeta argentina encontra eco na apreciação de Alan Pauls sobre o estilo de Bioy: "Ele é 'puro' demais, e está feito sempre de uma coisa só, apenas um tom, um só imaginário. Suponho que isso seja precisamente sua força, o que gostam nele, mas eu prefiro a literatura impura"."Talvez por serem transparentes demais, os textos de Bioy não se prestem muito a especulações críticas", avalia Pauls. "Seu legado é a defesa do relato, da narrativa, da naturalidade como estilo. São valores que a crítica não aprecia muito, basicamente porque é pouco o que se pode fazer com eles."

A esse respeito, a jornalista e editora argentina Violeta Weinschelbaum assente: a presença de Bioy na escrita acadêmica hoje é praticamente nula. "Hernán Díaz, diretor da Revista Hispánica Moderna, da Universidade Columbia, comentava comigo que, nos três últimos anos, apareceu um só artigo sobre sua literatura", fala.

"Dos autores jovens que conheço, ninguém se interessa muito por ele", completa a editora, apontando que, enquanto "quase ninguém o lê sistematicamente", é possível notar certo "delírio", à moda da literatura de César Aira, "que parece determinar grande parte da literatura contemporânea na Argentina e tem muito a ver com Bioy".

Weinschelbaum chama a atenção para outro ponto, referente à classe: muitos desses autores, diz, têm uma postura clara de fastio frente à aristocracia de Bioy. "Em contrapartida, o ativismo político de Cortázar faz com que siga mais vigente entre determinado grupo de escritores (e de leitores) que manifestam certo progressismo político. O interessante", fala, "é que Bioy e Cortázar se admiravam, não havia brigas entre eles."

Filho de fazendeiros e casado com Silvina Ocampo, a filha mais nova de uma das famílias mais ricas da Argentina, Casares sempre levou sua classe com pudor e discrição, que é como levavam a classe os homens com classe de antes dos anos 1970. "Essa falta de ostentação e essa naturalidade estão muito em sincronia com a poética de Bioy, que descansa no 'understatement' e na transparência", comenta Pauls. "A partir dos anos 1990, quando irrompem na Argentina os novos poderosos, a alta burguesia a que pertencia Bioy passa a ser uma classe admirável (por seus modos, sua cultura, sua ética), inclusive para a esquerda que sempre a combateu."

"Creio que não trabalhou um único dia de sua vida, viveu muito comodamente, com uma herança familiar, e isso sempre despertou certo preconceito", analisa Rodrigo Fresán. "É um autor por quem a academia nunca se interessou. Conheço escritores que o consideram um burguês aristocrata que escrevia em seu tempo livre. O que não dizem é que foi um burguês aristocrata que escrevia muito bem em seu tempo livre."

César Aira, por sua vez, revela nunca ter nutrido muita simpatia por Bioy, ainda que "tenha terminado por perdoá-lo" quando leu seu Borges. "É um livro maravilhoso, que justifica uma vida de escritor", elogia, por e-mail. "De sua obra, gosto de A Aventura de um Fotógrafo em La Plata, e de alguns contos, como 'O Grande Serafim'. A Invenção de Morel tem uma explicação final longa demais, que torna o livro feio. Se um romance precisa de tanta explicação é porque alguma coisa falhou. Pensando agora, o que mais gosto de Bioy é seu último livro, De um Mundo a Outro, do qual todos dizem, seguramente com razão, que é senil — e que se parece tanto ao que eu escrevo."

Para o argentino Oliverio Coelho, eleito um dos melhores jovens autores hispano-americanos pela revista britânica Granta em 2011, "Bioy inaugurou um modo de escrever atípico para a época na Argentina, uma modalidade sem estridência, um sistema narrativo onde o jogo de matizes, a sátira e a ambiguidade psicológica aparecem unidos a certa naturalidade na escrita, uma coisa única". Enquanto encara um wok de macarrão com legumes no bar Shangai, em Palermo, Coelho lamenta a ausência de Bioy no debate literário argentino. "Dá para pensar nos contos de Bioy como uma indagação dos afetos unida ao recurso fantástico. Talvez nenhum escritor tenha oferecido percepções do amor tão diversas e contraditórias."

Na opinião de Alan Pauls, contudo, o melhor de Bioy está nos livros que escreveu com Borges — Seis Problemas para Dom Isidro Parodi (1942), Duas Fantasias Memoráveis (1946), Crônicas de Bustos Domecq (1967) e Novos Contos de Bustos Domecq (1977). "Amparados por um pseudônimo", diz o autor de O Passado, "Borges e Bioy lançaram mão de elementos que não poderiam nunca figurar em suas obras individuais". Entre eles, destaca "uma certa artificiosidade barroca, o uso brutal da cultura popular, atrevimento e paixões rasteiras".

A história é sabida: quando se conheceram, em 1932, na casa de Victoria Ocampo, em San Isidro, Bioy tinha 17 anos, e Borges, pouco mais de 30. Lá, reuniam-se colaboradores e pessoas ligadas à revista "Sur", editada por Ocampo — irmã mais velha da futura mulher de Bioy.

"Na casa de Victoria estávamos num mundo literário que não era o nosso", lembra Bioy, numa das entrevistas que deu a Sorrentino. A conexão entre Borges e Bioy foi instantânea. Por muito tempo, encontraram-se diariamente para discutir textos, criar histórias e colocar em prática a maledicência literária — "Creio que Thomas Mann era um idiota" (Borges); "Nada pode ser pior do que Quiroga" (Bioy). Em seu Um Ensaio Autobiográfico (1970), Borges diz que um dos principais acontecimentos de sua vida foi a amizade com Bioy. "Ao se opor a meu gosto pelo barroco, ele fez-me sentir que a discrição e o comedimento são mais convenientes. Eu diria que Bioy foi me levando aos poucos ao classicismo", escreveu.

As comparações entre Borges e Bioy são uma instituição da literatura. Para muitos, é como se Bioy fosse o Watson de Sherlock Holmes ou o Sancho Pança de Quixote. "Mas quem não gostaria de ser o Watson de Sherlock Holmes?", pergunta Rodrigo Fresán. "Sem falar que Watson salva Holmes e Sancho salva Quixote."

"De um ponto de vista muito pessoal, digo algo que costuma me trazer problemas: Bioy Casares é melhor do que Borges", provoca. "Essa visão não é partilhada pela maioria dos meus colegas argentinos, mas Bioy me parece um escritor mais completo. Borges me faz pensar no HAL 9000, computador de 2001, Uma Odisseia no Espaço. Tem algo de máquina, não humana, não sensível. Para mim, Bioy tem tudo o que há em Borges e, além disso, certa sensualidade, paixão, uma consideração com as personagens femininas que em Borges simplesmente não existe. Quando Borges quer tratar de amor, sinto vergonha alheia. Dá vontade de sair correndo, um pouco de pena. Já Bioy não: é um grande sensualista."

A esse respeito, Bioy Casares, numa das entrevistas que concedeu a Sorrentino, lembra de Borges como uma figura "eminentemente épica", que nutria desprezo pelo intimismo. "Nos livros, não gostava de expressar sentimentos, mas na vida era mais sentimental", diz. "Ficava apaixonado, sofria, deixava ver que estava completamente apaixonado. E tinha má pontaria para mulheres; elas muitas vezes o maltratavam por causa dessa entrega excessiva."

Borges admirava Bioy por sua sedutora elegância, pela maneira como, sutilmente, colocava em marcha suas conquistas. Pelos braços de Bioy passou uma infinidade de mulheres, solteiras e casadas — Elena Garro, mulher de Octavio Paz, foi uma das que durante anos sucumbiram a seus encantos. O escritor jogando tênis e tomando chá no clube com amigas queridas; o escritor em seu carro na saída dos fundos do teatro, com um cigarro nos lábios, esperando uma atriz ou corista do espetáculo: imagens possíveis de Bioy.

O escritor espanhol Manuel Vincent conta, em artigo de 2007 publicado no jornal El País, que, certa noite, em uma reunião de amigos na casa de Bioy, o escritor Carlos Mastronardi teria exclamado: "Genca está poderosíssima!". Tratava-se de Silvia Angélica, sobrinha de Silvina. Graças a esse comentário, Bioy reparou na beleza extraordinária de Genca, na época com quase trinta anos — e no dia seguinte a fez sua amante.

Bioy relata que, quando era adolescente, sofria de amores. Depois, tudo mudou. "Quando tive apenas uma mulher, fui muito infeliz. Com duas ou três, parece que adivinhavam e me mimavam para não me perder. Talvez tenha sido um Don Juan para me proteger", afirma. "Quando dizia a verdade e me entregava por completo, era comum que imediatamente fosse dominado e castigado."

Em uma entrada de Descanso de Caminantes intitulada "Mar del Plata", Bioy recorda que "suas amigas" às vezes queriam tirá-lo de casa durante a noite, mas ele se negava, "porque Silvina ficava ansiosa, e porque passar a noite fora sempre lhe deu medo e tristeza, um certo sentimento de culpa".
Para o crítico Alberto Giordano, em "La Intimidad de un Hombre Simples: los Escritos Autobiográficos de ABC", a "vida amorosa de Casares foi a de um temeroso Don Juan que teve que ser também um marido fiel". "Em casa sentia-se seguro, mas asfixiado e ansioso para saber se continuava sendo atraente para as mulheres de fora", escreve. "Quando estava fora, uma vez consumadas suas aventuras de sedutor, sentia um impreciso e arcaico temor diante do desconhecido que o levava de volta para casa."

Giordano imagina Bioy como um fantasma triste, vagando de um lugar a outro, prisioneiro de suas inconstâncias e infidelidades, traído por suas próprias armadilhas. "Mais ou menos como o imaginou Elena Garro, em um melancólico personagem de Testimonios de Mariana (1999), um Don Juan tomado pelo sentimento de 'filho infeliz de suas mulheres'."

A Silvina Ocampo, todavia, nunca caiu bem o papel de vítima, de mulher traída. Na história dessa relação de grande amor, tão bonita quanto controversa, Ocampo desafiava as ideias de como uma mulher deveria ser em sua época. Também teve suas aventuras, e sob certos aspectos, diz Giordano, "de maneira ainda mais radical do que Bioy, porque menos previsíveis".

Em Los Bioy [Tusquets, R$ 26,10, 186 págs.], livro de memórias que retrata os 50 anos em que trabalhou para o casal Bioy-Ocampo, a criada Jovita Iglesias conta que "Marcelo Pichon Rivière, muito amigo da senhora e do senhor, escreveu, depois da morte de Bioy, que na verdade Silvina havia tido uma vida amorosa igualmente intensa à de Adolfito, só que com mulheres".

Não se trata de um segredo. E é conhecida a carta que, em janeiro de 1972, poucos meses antes de suicidar-se, a poeta Alejandra Pizarnik envia a Ocampo. Nela, pede a Silvina que não a esqueça, que a ama demais e que gostaria que "estivesse nua, ao seu lado agora, lendo poemas em voz alta" (a carta é parte da correspondência de Pizarnik, publicada em 1988, pela Seix Barral).

É difícil prever o que o futuro reserva a Bioy ou como o seu espectro se comportará num mundo que, sob muitos aspectos, apresenta-se como seu antípoda. "A princípio, acho que Bioy não deixa herdeiros: os rumos da atual ficção hispano-americana são distintos demais do que ele concebeu e escreveu", avalia o crítico e professor Júlio Pimentel Pinto.

"Ao mesmo tempo, porém, me vem à cabeça uma infinidade de heranças de Bioy. Por exemplo: seu trabalho como editor e antologista, que determinou a difusão, na Argentina, de autores hoje óbvios, mas pouco ou nada conhecidos à época, como Kafka e Swedenborg." Pimentel frisa ainda "seu apreço, tão raro entre nós, pelas histórias de aventuras e pelos enigmas policiais; um apreço pela literatura de engenho, pelo rigor das arquiteturas narrativas, pela elegância do texto, pelo domínio pleno da língua". "Ou, ainda, a originalidade e a precisão das ambientações de seus romances, as categóricas descrições de personagens: sutis, complexas, envolventes — como as tramas que inventava."

Para Rodrigo Fresán, uma narrativa de Bioy que deve romper a dimensão espaço-tempo de nossos dias e permanecer no futuro é O Sonho dos Heróis — a história de um personagem que perde a lembrança de uma noite em que algo revelador aconteceu e, anos depois, decide tentar recuperá-la. "Formalmente, é o maior romance da literatura argentina, o romance mais perfeito", diz. "Adán Buenosayres, Sobre Heróis e Tumbas, O Jogo da Amarelinha, Facundo, Respiração Artificial são todos romances desarticulados, episódicos. São prisioneiros do fantasma do conto, gênero rei da literatura argentina", afirma Fresán. "O Sonho dos Heróis rende homenagem a essa estranheza, pois é um romance que tenta o tempo todo recordar um conto: o que aconteceu numa única noite. Trata-se de um conto e de um romance, ao mesmo tempo."

Ao fim, um possível legado de Bioy poderia estar na sua reticência, na sua sobriedade deliberada, na modéstia estilística que atravessa suas narrativas — no ar de uma rua pequena, escondida atrás de uma praça, na Recoleta. "A herança de Bioy, de tão ampla e discreta, é destituída de qualquer testamento e talvez nem consigamos ter consciência de sua profundidade", diz Pimentel. "Mas como seria bom se não o perdêssemos de vista."
.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

os mentirosos

.
Texto novo no blog da Companhia das Letras.
.
Acho que o cronista que mais li na vida foi o Mario Prata. Quando ele começou a publicar seu James Lins, o playboy que não deu certo, folhetim encartado às quartas, sábados e domingos n’O Estado de S.Paulo, eu tinha onze anos. Durante o fim de 1993 e os primeiros meses de 1994, não perdi nenhum dos 36 capítulos da história, que terminavam sempre com aquele típico gancho do gênero, algo em suspenso, pâm-pâââmmm, a promessa de continuação.

A experiência era também como a exumação de um cadáver. Largada numa curva dos anos 60 (pós-Asfalto selvagem, do Nelson Rodrigues, que foi sucesso no Última hora entre 1959 e 60), a ficção em capítulos havia migrado para a tevê e nunca mais voltaria às páginas dos grandes jornais. Meu pai, que lia a história comigo, me explicava o que era um folhetim (do jeito que provavelmente vamos falar aos nossos filhos sobre o orelhão e a videolocadora) e tentava dirimir com naturalidade/respostas técnicas minhas eventuais dúvidas (“pai, o que é ‘michê do Trianon’?”; “o que é 69?”).

De saída, ficávamos sabendo que James Lins, 51, “golpista, simpático, mulherengo, mentiroso”, havia sido condenado a trinta e dois anos de prisão. Mas qual teria sido o seu crime? Essa pergunta — e se o personagem ficaria ou não com a Teka, seu amor de juventude — era o que alavancava a ação. Ou melhor, a enrolação. No folhetim, tudo é postergado, o tempo todo, o que pode nos levar à ruína, sofrimento e morte. No caso do Prata, porém, esse procrastinar narrativo esbanjava simpatia, era também alvo das ironias do autor, e nos carregava por situações maravilhosas como a da freira que comia os próprios seios (na verdade, James Lins disfarçado, com duas mortadelas debaixo do hábito) ou a das estalactites de esperma no teto do vestiário feminino do clube da cidade. (Em tempo: no departamento dos truques, lenga-lenga e macetes narrativos típicos do gênero, nosso herói se chama Alexandre Dumas, criador de um personagem, o criado Grimaud que, taciturno, só respondia em monossílabos — porque os jornais da época pagavam por linha.)

Meu interesse pela história do James Lins, “playboy dos Jardins que gostava de loiras oxigenadas de vida duvidosa”, tinha ainda um elemento adicional: o fato de o personagem ter nascido na cidade da minha mãe, Lins, no interior de São Paulo — que é a cidade do Mario Prata também. Eu sabia muito pouco sobre Lins. Depois que minha mãe nasceu, meus avós logo se mudaram para São Paulo; eu não tinha parentes por lá, nada. Acompanhar o folhetim, então, fazia com que eu criasse uma ideia da cidade, que se tornou, para mim, a das sessões de Juventude transviada, no Cine Sebastião; dos carnavais no Linense; de amigos cujos apelidos eram Bambolê, Chinesinho e Pintassilgo; do James Lins que “andava de preto, usava topete, mascava chiclete, tomava Coca-Cola com Melhoral e ficava doidão”.

Para mim, e ainda no terreno da memória afetiva, a história do Prata se ligava a uma outra, igualmente picaresca, até hoje meu livro preferido da infância: As aventuras do Barão de Munchausen. Havia algo de James Lins nas proezas contadas pelo Barão, que andara por São Petersburgo, Cairo, Londres, pelo Ceilão, África e uma infinidade de outros lugares.

Em ambas as histórias, os autores diziam ter conhecido seus personagens. O Mario Prata era “amigo de infância” do mentiroso James Lins (que em determinado momento da trama, aliás, se rebelava e passava a escrever o folhetim no lugar do Prata, afastado pela direção d’O Estado de S.Paulo). O Barão de Munchausen, por sua vez, parece realmente ter existido — quem somos nós para duvidar. Nasceu em 1720, foi tenente, capitão de cavalaria, serviu num regimento russo e teria lutado em duas guerras turcas. Depois de doze anos de serviço militar, aposentou-se. Nas recepções em sua casa em Hanover, na Baixa Saxônia alemã, gostava de entreter amigos e convidados com as histórias de suas aventuras, caçadas e viagens a terras estrangeiras.

Era exímio caçador, e entre seus relatos (não raro, politicamente incorretos, como os do James Lins) estava o da vez em que se viu diante de uma “esplêndida raposa negra, cuja pele valia demais para que a danificasse com uma bala” e não encontrou outra saída que não: chicotear o animal até que ele saltasse para fora da própria pele. Entre os ouvintes desse e de outros causos, a lenda conta, estava o bibliotecário e cientista Rudolf Erich Raspe (1737-1794), a quem se atribui a autoria das aventuras do Homem de Munchausen.

As primeiras histórias do Barão foram publicadas anonimamente em forma de anedotas, entre 1781 e 1783, numa revista chamada Vade Mecum für lustige leute (Manual para pessoas divertidas). Depois, acrescidas de mais relatos, viraram livro, A narrativa do Barão de Munchausen, de suas maravilhosas viagens e campanhas na Rússia. Originalmente, não foram escritas para crianças. Mas quem é que tem controle sobre essas coisas? “Kipling dedicou sua vida a escrever em função de determinados ideais políticos, quis fazer de sua obra um instrumento de propaganda e, no entanto, no final da sua vida teve que confessar que a verdadeira essência da obra de um escritor costuma ser ignorada por este; e lembrou o caso de Swift, que ao escrever Viagens de Gulliver quis levantar um testemunho contra a humanidade e deixou, no entanto, um livro para crianças”, escreveu Borges num ensaio do seu melhor livro, Discussão.

Meu episódio preferido das narrativas do Barão é uma das cenas clássicas da história da literatura, e quem me contou foi (de novo) meu pai, antes mesmo de eu ler o livro. A cavalo, Munchausen parte em viagem a Rússia, em pleno inverno. Errando à noite, pela escuridão, com o campo coberto de neve, decide parar para descansar. Está num lugar deserto, não se vê nada, apenas quilômetros de branco. Desmonta e amarra o animal a “uma coisa que despontava na neve, um tronco pontudo de árvore”. Deita agarrado a uma de suas pistolas (medida de cautela) e dorme “tão profundamente que só abre os olhos em plena luz do dia”. Quando acorda, tudo mudou: está no meio de um vilarejo, no pátio de uma igreja, e ouve seu cavalo relinchar num lugar distante, alto.

Olhando para cima, vê o bicho pendurado, pelas rédeas, na cruz da igreja. “Aí tudo ficou muito claro”, afirma, “durante a noite, o vilarejo tinha sido coberto de neve; mas acontecera uma súbita mudança no tempo; eu fui afundando devagar até o pátio da igreja enquanto dormia; e aquilo que, no escuro, eu tinha pensado ser o toco de uma árvore despontando acima da neve onde tinha amarrado meu cavalo, provou ser a cruz ou o catavento da torre da igreja!” (Tradução de Ana Goldberger, na edição da Iluminuras).

Há uns dois meses, participei de um bate-papo com o Mario Prata no Sesc Pinheiros. Contei a ele a história acima, de quando li o James Lins. Ele me falou do seu livro novo, que deve sair em breve. É uma série de entrevistas. O Prata encontrou e conversou com gente como o Aleijadinho, Pedro Álvares Cabral, o Bispo Sardinha, Ruy Barbosa, Anchieta (papo que aconteceu no Boteco das Ostra — assim mesmo, sem o plural —, na praia de Iperoig), o Carlos Gomes, a Marquesa de Santos, entre outros. Com o Cabral, aliás, além de revelações sobre o Descobrimento, um dos assuntos foi o Paulo Maluf — o tipo de coisa que o Munchausen aprovaria.
.