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Texto do Pedro Moura sobre HQs brasileiras, com análises do Campo em branco e da Cachalote, no blog de quadrinhos do jornal Publico, em Portugal. E no próximo dia 2, em Curitiba, Campo em branco no teatro. Detalhes aqui.
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"Este outro livro foca a relação entre dois irmãos, que não se vêem há muito, Lucio e Mirko, e cuja relação parece ter sido abalada por eventos do seu passado que nunca são totalmente revelados, mas que poderão ter tido algum contorno traumático. Mirko quer visitar novamente uma montanha com Lucio, o que os lança numa pequena, simples mas ainda assim complexa trajectória em direcção ao erro, à falha de comunicação, aos afastamentos apenas expectáveis por aqueles que mais próximos seriam. Nessa visita à montanha, que traz elementos do passado, haverá um acme para além do qual a narrativa muda, se bem que o eixo não é apenas a montanha, mas a mulher com que se cruzam. Ela é o factor que acabará por pautar a relação entre os irmãos, e caracterizar a mudança verificada.
Campo em branco, apesar de ter apenas uma diegese, tem uma estrutura narrativa complexa, sistematicamente vogando entre analepses e prolepses, nem todas vizinhas umas das outras, e não procurando uma simetria absoluta. Além do mais, o livro em si encontra-se dividido em duas partes, separadas pela repetição de uma folha de título, mas para além do hipotético acidente no topo da montanha, experienciado pelos irmãos, é da responsabilidade do leitor compreender o que une os elementos da primeira parte e os da segunda parte para as constituir enquanto tal (se bem que a presença da personagem feminina seja um forte indício do “factor” que altera a trama).
Construída por diálogos, a dimensão verbal é assegurada de uma forma que implica uma atenção para com o que não é dito, o que fica implícito, ou mesmo os significados dúplices do que o que é dito pode assumir, haja ou não uma corroboração ou apoio à interpretação através das expressões das personagens ou de objectos colocados judiciosamente no espaço do que é dito. Se se cria sempre, necessariamente, um elo de significação entre as palavras e as imagens quando são apresentadas numa unidade de leitura, Campo em branco segue um caminho cheio de ambiguidades.
Tirando partido ou justificando-se pelo título, existe um bom número de páginas que espalha vinhetas ou apresenta uma estrutura de vinhetas “menor” do que a mancha da página usual, revelando assim o branco do papel. Existem ainda, uma vez que se utiliza uma segunda cor (um azul submisso), grandes expansões de branco, ora por não existir nada desenhado, isolando-se as figuras, os objectos, ora por se querer representar uma área larga de vazio. Esse é um segundo ponto que contribui para a ambiguidade.
Mas ainda há um terceiro elemento. Curiosamente, também como em Cachalote se tira partido de algumas teorias quânticas, já que Lucio estuda física. E um dos problemas de base está precisamente no princípio da indeterminação, no qual ou se conhece a posição da partícula mas não a sua trajectória, ou a sua trajectória mas não a sua localização. Algo expectável, essa imagem deve servir de metáfora talvez à relação entre as duas “partículas” de Lucio e Mirko.
Apesar de todos estes encaixes que vão colorindo — ou desbotando? — a relação entre os irmãos com esses sinais de indeterminação, aumentando a crise entre ambos, não se espere por uma exploração das emoções ou de episódios empolgantes. O ritmo é outro. A exploração dos tempos diferentes em simultâneo, a concentração na perspectiva, inclusive interna, de Lucio, a aparente apatia das suas acções e reacções ao que o envolve, querem fazer emergir antes tensões não-resolvidas pelos canais mais usuais. Querem que essa tensão se mantenha, uma intensidade contínua, vibrante, mas que não causa movimentos bruscos.
O final é calmo, nada melodramático, mas ainda assim demonstra a forma como Lucio integra em si mesmo “as coisas que acontecem”, como se aceitasse não poder determinar o movimento das partículas ou mesmo compreendendo que o seu acto de observação poderá determinar a posição dessas partículas.
Ribatski tira partido de toda e qualquer possibilidade de composição, quer abandonando-se a spreads ou criando tessituras intricadas de muitas vinhetas numa só página. Além disso, em termos figurativos e de cor (mesmo usando apenas o preto, e o azul ser aplicado posteriormente, criam-se impressões de texturas, planos diferenciados, matizes de luz), o autor também opera numa grande diversidade. É possível que Ribatski utilize caneta ou aparo, ou mesmo pincel fino, para as figuras humanas e as suas mínimas mas moldáveis expressões, mas também usa pinceladas vigorosas de tinta-da-china para determinar sombras, uma nuvem carregada, os cabelos soltos ao vento, as texturas da água, árvores e vegetação em movimento etc. Uma dupla página revelando a tenda no topo da montanha prestes a ser engolida pela noite mostra o modo como o autor conduz a materialidade da tinta de forma visível para criar significados multidimensionais. Esta capacidade de nos dar a ver o que é representado, por um lado, a ilusão do mundo ficcional, e a de dar a ver as formas materiais com que ele é feito, por outro, parece ser uma assinatura de Ribatski, e não deixa de ser igualmente um tema do livro."
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Texto do Pedro Moura sobre HQs brasileiras, com análises do Campo em branco e da Cachalote, no blog de quadrinhos do jornal Publico, em Portugal. E no próximo dia 2, em Curitiba, Campo em branco no teatro. Detalhes aqui.
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"Este outro livro foca a relação entre dois irmãos, que não se vêem há muito, Lucio e Mirko, e cuja relação parece ter sido abalada por eventos do seu passado que nunca são totalmente revelados, mas que poderão ter tido algum contorno traumático. Mirko quer visitar novamente uma montanha com Lucio, o que os lança numa pequena, simples mas ainda assim complexa trajectória em direcção ao erro, à falha de comunicação, aos afastamentos apenas expectáveis por aqueles que mais próximos seriam. Nessa visita à montanha, que traz elementos do passado, haverá um acme para além do qual a narrativa muda, se bem que o eixo não é apenas a montanha, mas a mulher com que se cruzam. Ela é o factor que acabará por pautar a relação entre os irmãos, e caracterizar a mudança verificada.
Campo em branco, apesar de ter apenas uma diegese, tem uma estrutura narrativa complexa, sistematicamente vogando entre analepses e prolepses, nem todas vizinhas umas das outras, e não procurando uma simetria absoluta. Além do mais, o livro em si encontra-se dividido em duas partes, separadas pela repetição de uma folha de título, mas para além do hipotético acidente no topo da montanha, experienciado pelos irmãos, é da responsabilidade do leitor compreender o que une os elementos da primeira parte e os da segunda parte para as constituir enquanto tal (se bem que a presença da personagem feminina seja um forte indício do “factor” que altera a trama).
Construída por diálogos, a dimensão verbal é assegurada de uma forma que implica uma atenção para com o que não é dito, o que fica implícito, ou mesmo os significados dúplices do que o que é dito pode assumir, haja ou não uma corroboração ou apoio à interpretação através das expressões das personagens ou de objectos colocados judiciosamente no espaço do que é dito. Se se cria sempre, necessariamente, um elo de significação entre as palavras e as imagens quando são apresentadas numa unidade de leitura, Campo em branco segue um caminho cheio de ambiguidades.
Tirando partido ou justificando-se pelo título, existe um bom número de páginas que espalha vinhetas ou apresenta uma estrutura de vinhetas “menor” do que a mancha da página usual, revelando assim o branco do papel. Existem ainda, uma vez que se utiliza uma segunda cor (um azul submisso), grandes expansões de branco, ora por não existir nada desenhado, isolando-se as figuras, os objectos, ora por se querer representar uma área larga de vazio. Esse é um segundo ponto que contribui para a ambiguidade.
Mas ainda há um terceiro elemento. Curiosamente, também como em Cachalote se tira partido de algumas teorias quânticas, já que Lucio estuda física. E um dos problemas de base está precisamente no princípio da indeterminação, no qual ou se conhece a posição da partícula mas não a sua trajectória, ou a sua trajectória mas não a sua localização. Algo expectável, essa imagem deve servir de metáfora talvez à relação entre as duas “partículas” de Lucio e Mirko.
Apesar de todos estes encaixes que vão colorindo — ou desbotando? — a relação entre os irmãos com esses sinais de indeterminação, aumentando a crise entre ambos, não se espere por uma exploração das emoções ou de episódios empolgantes. O ritmo é outro. A exploração dos tempos diferentes em simultâneo, a concentração na perspectiva, inclusive interna, de Lucio, a aparente apatia das suas acções e reacções ao que o envolve, querem fazer emergir antes tensões não-resolvidas pelos canais mais usuais. Querem que essa tensão se mantenha, uma intensidade contínua, vibrante, mas que não causa movimentos bruscos.
O final é calmo, nada melodramático, mas ainda assim demonstra a forma como Lucio integra em si mesmo “as coisas que acontecem”, como se aceitasse não poder determinar o movimento das partículas ou mesmo compreendendo que o seu acto de observação poderá determinar a posição dessas partículas.
Ribatski tira partido de toda e qualquer possibilidade de composição, quer abandonando-se a spreads ou criando tessituras intricadas de muitas vinhetas numa só página. Além disso, em termos figurativos e de cor (mesmo usando apenas o preto, e o azul ser aplicado posteriormente, criam-se impressões de texturas, planos diferenciados, matizes de luz), o autor também opera numa grande diversidade. É possível que Ribatski utilize caneta ou aparo, ou mesmo pincel fino, para as figuras humanas e as suas mínimas mas moldáveis expressões, mas também usa pinceladas vigorosas de tinta-da-china para determinar sombras, uma nuvem carregada, os cabelos soltos ao vento, as texturas da água, árvores e vegetação em movimento etc. Uma dupla página revelando a tenda no topo da montanha prestes a ser engolida pela noite mostra o modo como o autor conduz a materialidade da tinta de forma visível para criar significados multidimensionais. Esta capacidade de nos dar a ver o que é representado, por um lado, a ilusão do mundo ficcional, e a de dar a ver as formas materiais com que ele é feito, por outro, parece ser uma assinatura de Ribatski, e não deixa de ser igualmente um tema do livro."
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