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Texto novo no blog da Companhia das Letras.
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Mother, do sul-coreano Joon-ho Bong, começa assim:
Apesar da dança excelente, esta cena de abertura pode sugerir que pela frente vamos esbarrar numa história: lírica, existencial, morosa e/ou contemplativa. Nada mais errado. Mother é um thriller dos melhores, conduzido por roteiro de fazer o cinema recente argentino esturricar e cair para o lado — em notas relacionadas: o melhor filme que vi em 2013 foi de um sul-coreano também, A visitante francesa, de Sang-soo Hong.
Joon-ho Bong é um dos meus diretores favoritos. É dele O hospedeiro, filme de monstro e mutações genéticas divertido até para quem nutre interesse negativo por filmes de monstro e mutações genéticas — para quem gosta de H.P. Lovecraft vale muito. Recentemente, foi lançada a primeira produção de Bong fora da Coreia (com Tilda Swinton e Chris Evans), Snowpiercer. O argumento é animador: o mundo sofreu um colapso climático, e um grupo de humanos sobrevive e evolui num trem, que dá voltas pela Terra, sem nunca parar. Mas confesso que o trailer me deixou meio triste (muita LUTA, tudo muito grandioso demais), e parece que o estúdio interferiu e o diretor não gostou nada do corte final também.
Mas voltemos a Mother.
A premissa do filme é simples: uma mãe superprotetora quer provar a inocência do filho adolescente num caso de assassinato. Uma colegial da pequena cidade foi morta de maneira brutal e pendurada de cabeça para baixo na sacada de uma casa, à vista de todos. Há policiais ineficientes (que assistem CSI e não se lembram da última vez que investigaram um homicídio); há um drama do passado (instalado de maneira rápida e sem muitas explicações — como se deve ser); há uma mãe que, espécie de Charles Bronson versão coreana acupunturista de meia-idade, se vê sozinha e decide fazer justiça com as próprias mãos.
Com as próprias mãos é uma expressão adequada aqui, já que Hye-ja, a mãe do título, carrega sempre consigo seu estojinho com agulhas de acupuntura. Esse detalhe (o estojinho, o fato de a personagem fazer acupuntura) está longe de ser apenas pitoresco. Pensei nisso dia desses ao rever um outro filme, Aqui é o meu lugar, de Paolo Sorrentino, em que Sean Penn vive um astro de rock velho e decadente.
Quando assisti ao filme de Sorrentino, fiquei com a impressão de que a história se afogou em uma espécie de excesso de extravagâncias. Era como se a sequência de esquisitices e de tiradas espirituosas do personagem, o tempo todo, sem descanso, fizesse tudo parecer amorfo, gratuito. Nada se destacava nem repercutia na trama. Todos os detalhes e imagens criados por Sorrentino pareciam simplesmente a serviço deles mesmos (veja como sou estranho!). Em Mother, ao contrário, a acupuntura e o estojinho com as agulhas, detalhes simples, estão no coração do enredo, de maneira tão exata que dão a impressão de que sempre estiveram ali. Não posso me estender em como isso se desenvolve, estaria incorrendo no crime do spoiler, mas creia: são detalhes que atuam como fios condutores, leitmotivs.
*
Nem todos detalhes e objetos de uma trama devem funcionar assim, claro.
Mas essa era uma das formas como Robert Louis Stevenson (1850-1894) pensava o detalhe em suas histórias. O autor de A ilha do tesouro pregava certa economia no seu uso. Acreditava que contra um fundo escasso o efeito seria mais eficaz, mais plástico, mais visual. Stevenson se insurge contra certos autores de seu tempo que, “após Sir Walter Scott”, passaram a encher de detalhes seus relatos. Queixa-se de que os detalhes ou particularidades dominaram o romance até o ponto em que já não existe mais lugar para a imaginação do leitor.
O que parece ocorrer é um congestionamento visual, seja através do excesso de detalhes realistas evocado por Stevenson, ou do excesso de detalhes cool-extravagantes à Sorrentino — importante dizer que nem Aqui é o meu lugar, nem Mother são filmes que se pretendem realistas.
Do lado realista-sério, James Wood dedica ao detalhe todo um capítulo de Como funciona a ficção. E confessa também “certa ambivalência em relação ao uso do detalhe”. “Gosto, saboreio, reflito sobre ele [...]”, afirma. “Mas o excesso de detalhes me sufoca, e acho que certa tradição claramente pós-flaubertiana os transformou em fetiches”.
Num dos momentos mais interessantes do livro, o crítico inglês responde a um famoso texto de Roland Barthes, “O efeito do real”, em que Barthes argumenta a partir de um trecho do conto “Um coração simples”, de Flaubert (“Rente ao lambril, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de mogno. Um velho piano sustentava, logo abaixo de um barômetro, uma pilha piramidal de caixas e cartões”). O piano, diz Barthes, está ali para sugerir uma condição social burguesa, as caixas e cartões talvez para sugerir desordem. Mas por que há um barômetro? O barômetro não denota nada; é um objeto aparentemente “irrelevante”.
Wood, com sua verve habitual, comenta que Barthes “é rápido demais em decidir qual detalhe é relevante e qual é irrelevante” na cena, e anota que “a categoria do irrelevante ou inexplicável existe na vida, assim como o barômetro, com toda a sua inutilidade, existe em casas reais”. O barômetro, portanto, não é “irrelevante”; é “significativamente insignificante” — o objeto revelaria, afinal, algo sobre o tipo de casa do personagem em questão: de classe média, e não alta; convencional; aparentemente antiquada. Wood diz, por fim, que o romance pós-Flaubert pede uma “combinação de detalhes: alguns relevantes, outros estudadamente irrelevantes”.
Em A Note on Realism, Stevenson volta ao tema, parece dialogar com Wood. (E acho bonito pensar em como Wood e Stevenson podem estar próximos — apesar de Wood não citá-lo nenhuma vez em seu livro, o que considero injusto, já que Stevenson pensou e polemizou como poucos sobre essas questões, e eu talvez esteja escrevendo este texto apenas para vê-los assim, de mãos dadas).
Stevenson diz que tem o costume de usar poucos detalhes supérfluos em suas histórias, mas que dá muita importância ao emprego sutil de certo tipo de detalhe. Faz então uma distinção, divide os detalhes em duas categorias. Há, para ele, uma categoria de detalhes que une diferentes momentos de um relato (atuando como leitmotivs) ou que ajuda a reforçar uma cena importante e emblemática; e outra de detalhes pouco relevantes, “inexplicáveis ou anômalos”, mas que levam o leitor a imaginar uma história para justificar a presença deles.
Nas mãos de Stevenson, o detalhe “significativamente insignificante” de Wood abre “perspectivas de relatos secundários”. Um exemplo, dado pelo crítico Daniel Balderston: a lista de coisas encontradas no baú do pirata Billy Bones em A ilha do tesouro. Uma caixa de lata, cigarros, dois pares de pistolas, um velho relógio espanhol, bússolas de bronze, cinco ou seis conchas raras das Índias Ocidentais. Esses detalhes poderiam ser trocados por outros; não têm nenhuma importância crucial. Mas aqui o leitor se vê obrigado a ir além do texto, a inventar (ou ao menos vislumbrar) as histórias que ocultam esses compassos, pistolas, relógio espanhol, conchas raras etc.
Lendo, fico feliz quando um detalhe RELUZ, assim, como o estojinho das agulhas de acupuntura de Hye-ja — ou como o barômetro de Flaubert, as bússolas de Stevenson.
Meus três detalhes/objetos preferidos do universo estão em Lolita, de Nabokov, numa cena que é também uma aula excelente de como antecipar a entrada de um personagem em cena. Levado pela criada, o narrador do livro, Humbert Humbert, visita a residência da sra. Haze, em busca de um quarto para alugar. Ele sabe que não vai ficar ali, desgosta de tudo. Mas vai passando de cômodo em cômodo, torcendo o nariz, pensando os piores pensamentos possíveis. Até que Humbert tem uma visão do banheiro, onde “coisas úmidas e informes pendiam acima da banheira duvidosa”, entre elas “o ponto de interrogação de um fio de cabelo colado a uma das paredes”.
Depois, atravessa a cozinha no final do hall, passa por uma despensa, entra na sala de visitas. Lá, percebe, no meio do caminho, uma meia branca atirada no chão, um único pé — que a sra. Haze apressa-se a jogar dentro de um armário. Mais adiante, quase no pátio, sobre a mesa de mogno, vê uma fruteira, vazia; no centro apenas um caroço, ainda úmido, de uma ameixa. Então, pouco mais de uma página depois, surge Lolita.
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Texto novo no blog da Companhia das Letras.
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Mother, do sul-coreano Joon-ho Bong, começa assim:
Apesar da dança excelente, esta cena de abertura pode sugerir que pela frente vamos esbarrar numa história: lírica, existencial, morosa e/ou contemplativa. Nada mais errado. Mother é um thriller dos melhores, conduzido por roteiro de fazer o cinema recente argentino esturricar e cair para o lado — em notas relacionadas: o melhor filme que vi em 2013 foi de um sul-coreano também, A visitante francesa, de Sang-soo Hong.
Joon-ho Bong é um dos meus diretores favoritos. É dele O hospedeiro, filme de monstro e mutações genéticas divertido até para quem nutre interesse negativo por filmes de monstro e mutações genéticas — para quem gosta de H.P. Lovecraft vale muito. Recentemente, foi lançada a primeira produção de Bong fora da Coreia (com Tilda Swinton e Chris Evans), Snowpiercer. O argumento é animador: o mundo sofreu um colapso climático, e um grupo de humanos sobrevive e evolui num trem, que dá voltas pela Terra, sem nunca parar. Mas confesso que o trailer me deixou meio triste (muita LUTA, tudo muito grandioso demais), e parece que o estúdio interferiu e o diretor não gostou nada do corte final também.
Mas voltemos a Mother.
A premissa do filme é simples: uma mãe superprotetora quer provar a inocência do filho adolescente num caso de assassinato. Uma colegial da pequena cidade foi morta de maneira brutal e pendurada de cabeça para baixo na sacada de uma casa, à vista de todos. Há policiais ineficientes (que assistem CSI e não se lembram da última vez que investigaram um homicídio); há um drama do passado (instalado de maneira rápida e sem muitas explicações — como se deve ser); há uma mãe que, espécie de Charles Bronson versão coreana acupunturista de meia-idade, se vê sozinha e decide fazer justiça com as próprias mãos.
Com as próprias mãos é uma expressão adequada aqui, já que Hye-ja, a mãe do título, carrega sempre consigo seu estojinho com agulhas de acupuntura. Esse detalhe (o estojinho, o fato de a personagem fazer acupuntura) está longe de ser apenas pitoresco. Pensei nisso dia desses ao rever um outro filme, Aqui é o meu lugar, de Paolo Sorrentino, em que Sean Penn vive um astro de rock velho e decadente.
Quando assisti ao filme de Sorrentino, fiquei com a impressão de que a história se afogou em uma espécie de excesso de extravagâncias. Era como se a sequência de esquisitices e de tiradas espirituosas do personagem, o tempo todo, sem descanso, fizesse tudo parecer amorfo, gratuito. Nada se destacava nem repercutia na trama. Todos os detalhes e imagens criados por Sorrentino pareciam simplesmente a serviço deles mesmos (veja como sou estranho!). Em Mother, ao contrário, a acupuntura e o estojinho com as agulhas, detalhes simples, estão no coração do enredo, de maneira tão exata que dão a impressão de que sempre estiveram ali. Não posso me estender em como isso se desenvolve, estaria incorrendo no crime do spoiler, mas creia: são detalhes que atuam como fios condutores, leitmotivs.
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Nem todos detalhes e objetos de uma trama devem funcionar assim, claro.
Mas essa era uma das formas como Robert Louis Stevenson (1850-1894) pensava o detalhe em suas histórias. O autor de A ilha do tesouro pregava certa economia no seu uso. Acreditava que contra um fundo escasso o efeito seria mais eficaz, mais plástico, mais visual. Stevenson se insurge contra certos autores de seu tempo que, “após Sir Walter Scott”, passaram a encher de detalhes seus relatos. Queixa-se de que os detalhes ou particularidades dominaram o romance até o ponto em que já não existe mais lugar para a imaginação do leitor.
O que parece ocorrer é um congestionamento visual, seja através do excesso de detalhes realistas evocado por Stevenson, ou do excesso de detalhes cool-extravagantes à Sorrentino — importante dizer que nem Aqui é o meu lugar, nem Mother são filmes que se pretendem realistas.
Do lado realista-sério, James Wood dedica ao detalhe todo um capítulo de Como funciona a ficção. E confessa também “certa ambivalência em relação ao uso do detalhe”. “Gosto, saboreio, reflito sobre ele [...]”, afirma. “Mas o excesso de detalhes me sufoca, e acho que certa tradição claramente pós-flaubertiana os transformou em fetiches”.
Num dos momentos mais interessantes do livro, o crítico inglês responde a um famoso texto de Roland Barthes, “O efeito do real”, em que Barthes argumenta a partir de um trecho do conto “Um coração simples”, de Flaubert (“Rente ao lambril, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de mogno. Um velho piano sustentava, logo abaixo de um barômetro, uma pilha piramidal de caixas e cartões”). O piano, diz Barthes, está ali para sugerir uma condição social burguesa, as caixas e cartões talvez para sugerir desordem. Mas por que há um barômetro? O barômetro não denota nada; é um objeto aparentemente “irrelevante”.
Wood, com sua verve habitual, comenta que Barthes “é rápido demais em decidir qual detalhe é relevante e qual é irrelevante” na cena, e anota que “a categoria do irrelevante ou inexplicável existe na vida, assim como o barômetro, com toda a sua inutilidade, existe em casas reais”. O barômetro, portanto, não é “irrelevante”; é “significativamente insignificante” — o objeto revelaria, afinal, algo sobre o tipo de casa do personagem em questão: de classe média, e não alta; convencional; aparentemente antiquada. Wood diz, por fim, que o romance pós-Flaubert pede uma “combinação de detalhes: alguns relevantes, outros estudadamente irrelevantes”.
Em A Note on Realism, Stevenson volta ao tema, parece dialogar com Wood. (E acho bonito pensar em como Wood e Stevenson podem estar próximos — apesar de Wood não citá-lo nenhuma vez em seu livro, o que considero injusto, já que Stevenson pensou e polemizou como poucos sobre essas questões, e eu talvez esteja escrevendo este texto apenas para vê-los assim, de mãos dadas).
Stevenson diz que tem o costume de usar poucos detalhes supérfluos em suas histórias, mas que dá muita importância ao emprego sutil de certo tipo de detalhe. Faz então uma distinção, divide os detalhes em duas categorias. Há, para ele, uma categoria de detalhes que une diferentes momentos de um relato (atuando como leitmotivs) ou que ajuda a reforçar uma cena importante e emblemática; e outra de detalhes pouco relevantes, “inexplicáveis ou anômalos”, mas que levam o leitor a imaginar uma história para justificar a presença deles.
Nas mãos de Stevenson, o detalhe “significativamente insignificante” de Wood abre “perspectivas de relatos secundários”. Um exemplo, dado pelo crítico Daniel Balderston: a lista de coisas encontradas no baú do pirata Billy Bones em A ilha do tesouro. Uma caixa de lata, cigarros, dois pares de pistolas, um velho relógio espanhol, bússolas de bronze, cinco ou seis conchas raras das Índias Ocidentais. Esses detalhes poderiam ser trocados por outros; não têm nenhuma importância crucial. Mas aqui o leitor se vê obrigado a ir além do texto, a inventar (ou ao menos vislumbrar) as histórias que ocultam esses compassos, pistolas, relógio espanhol, conchas raras etc.
Lendo, fico feliz quando um detalhe RELUZ, assim, como o estojinho das agulhas de acupuntura de Hye-ja — ou como o barômetro de Flaubert, as bússolas de Stevenson.
Meus três detalhes/objetos preferidos do universo estão em Lolita, de Nabokov, numa cena que é também uma aula excelente de como antecipar a entrada de um personagem em cena. Levado pela criada, o narrador do livro, Humbert Humbert, visita a residência da sra. Haze, em busca de um quarto para alugar. Ele sabe que não vai ficar ali, desgosta de tudo. Mas vai passando de cômodo em cômodo, torcendo o nariz, pensando os piores pensamentos possíveis. Até que Humbert tem uma visão do banheiro, onde “coisas úmidas e informes pendiam acima da banheira duvidosa”, entre elas “o ponto de interrogação de um fio de cabelo colado a uma das paredes”.
Depois, atravessa a cozinha no final do hall, passa por uma despensa, entra na sala de visitas. Lá, percebe, no meio do caminho, uma meia branca atirada no chão, um único pé — que a sra. Haze apressa-se a jogar dentro de um armário. Mais adiante, quase no pátio, sobre a mesa de mogno, vê uma fruteira, vazia; no centro apenas um caroço, ainda úmido, de uma ameixa. Então, pouco mais de uma página depois, surge Lolita.
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