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Sobre as Fabiolas de Francis Alÿs (texto para a edição desse mês da Bravo!):
No fim dos anos 80, quando abandonou a arquitetura, o artista belga Francis Alÿs entendeu que não deveria acrescentar mais nada às cidades, “apenas absorver o que já se encontrava nelas”. Trabalhar com o que chamou de “resíduos, vãos, espaços negativos”. Em 1992, vagando pelo mercado de pulgas de Bruxelas, esbarrou em um desses “resíduos”: o retrato de uma jovem, de perfil, com um véu vermelho, o olhar perdido.
Alÿs levou o quadro para casa. Sem dar muita importância, acabou reciclando-o, usando a tela como suporte para uma de suas pinturas. Meses depois, em outra feira de rua, um dejà-vu: a mesma figura, a jovem, de perfil, com um véu vermelho, o mesmo olhar. Havia ali, entretanto, algumas diferenças: um nariz adunco, a boca pintada, um queixo sobressalente. Decidiu ficar com ela — a imagem passou a decorar sua cozinha — e de tanto observá-la, Francis quis saber de quem afinal era aquele rosto. Descobriu que se tratava da reprodução de um retrato pintado em 1885 pelo francês Jean-Jacques Henner (1829-1905). A mulher chamava-se Fabiola. Tinha vivido em Roma no século IV e, após um divórcio e a morte de seu segundo marido, renunciara à “vida de pecados” para se dedicar à filantropia e à fé cristã. Canonizada em 547, tornou-se padroeira dos viúvos, divorciados e dos casamentos infelizes.
De lá para cá, Alÿs virou um caçador de Fabiolas. Já são 426 retratos, de todas as épocas, garimpados por todo o mundo, a maioria feita por anônimos, artesãos, pintores de fim de semana. Há de tudo: quadros, miniaturas, bordados, composições feitas com arroz, feijão, sementes. “Fabiola estava dormindo silenciosamente no esquecimento quando tentei trazê-la de volta à vida”, sorri Alÿs. “Meu papel foi o de revelar o fenômeno discreto de sua reprodução espontânea ao longo de décadas, manifestar sua condição de ícone, embora ignorado pelo establishment.”
Mais do que um projeto artístico, Francis considera Fabiola uma investigação. “Trata-se de uma questão aberta sobre o que é a arte contemporânea”, reflete. A mostra, que chega este mês à Pinacoteca de São Paulo, já passou pela National Portrait Gallery, em Londres, pelo Hispanic Society of America, em Nova York, pelo Haus Zum Kirschgarten, em Basel, entre outros museus. “Todos, tradicionalmente, dedicados à arte clássica, histórica”, destaca Francis. “Assim, as cópias são exibidas em um circuito que valoriza a autoria, em que o retrato original poderia estar.” Só não está, vale dizer, pois o quadro original sumiu ainda no século dezenove. “É uma imagem praticamente desconhecida, que sobreviveu graças a essas reproduções.”
Como uma Marylin de Andy Warhol às avessas, a Fabiola de Alÿs é o contrário de um retrato impessoal, produto da cultura de massa. “À primeira vista, a coleção parece uma série”, comenta. “Mas se chegamos mais perto, se passamos um tempo maior na companhia dessas imagens, o caráter artesanal se impõe. As diferenças começam a surgir e aumentam à medida que continuamos a observá-las.” Alÿs acredita que a coleção põe em cena uma estética “livre de ambições artísticas ou comerciais”. “O que se vê é a tentativa de se apropriar de uma imagem”, diz. “As obras compartilham aspectos idênticos mas são únicas. Acredito que cada autor tenha projetado nelas sua ideia muito pessoal de mulher, que poderia ser uma mãe, irmã, amante.”
Fabiola foi ganhando corpo a partir das andanças de Alÿs por feiras, antiquários e mercados de pulgas (“buracos negros da memória coletiva”). A ideia de caminhar, andar pela cidade, sobretudo pelas ruas da Cidade do México, onde Francis mora desde 1989, ocupa lugar central em seu processo artístico — vide obras como The Leak, Duett e Paradox of Praxis I. “Andar a pé, em particular à deriva, sem destino — ainda mais se pensarmos na cultura da velocidade do nosso tempo — é um tipo de resistência”, defende Alÿs. “É também um ótimo método para descobrir e criar histórias. É preciso estar alerta ao que acontece ao redor e, ao mesmo tempo, imerso nos próprios pensamentos.” Como resultado dessas jornadas, a obsessão por uma jovem, com um véu vermelho, o olhar perdido. Segui-la, catalogar seus disfarces. Pode-se dizer que nos últimos vinte anos Alÿs vem escrevendo secretamente a biografia de uma imagem — e ainda não terminou: há lacunas, capítulos pela frente. Pergunto: dentre todas, qual a sua Fabiola favorita? Francis sorri. “Vou te dar uma resposta típica de um pastor de ovelhas: todas e nenhuma.”
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Sobre as Fabiolas de Francis Alÿs (texto para a edição desse mês da Bravo!):
No fim dos anos 80, quando abandonou a arquitetura, o artista belga Francis Alÿs entendeu que não deveria acrescentar mais nada às cidades, “apenas absorver o que já se encontrava nelas”. Trabalhar com o que chamou de “resíduos, vãos, espaços negativos”. Em 1992, vagando pelo mercado de pulgas de Bruxelas, esbarrou em um desses “resíduos”: o retrato de uma jovem, de perfil, com um véu vermelho, o olhar perdido.
Alÿs levou o quadro para casa. Sem dar muita importância, acabou reciclando-o, usando a tela como suporte para uma de suas pinturas. Meses depois, em outra feira de rua, um dejà-vu: a mesma figura, a jovem, de perfil, com um véu vermelho, o mesmo olhar. Havia ali, entretanto, algumas diferenças: um nariz adunco, a boca pintada, um queixo sobressalente. Decidiu ficar com ela — a imagem passou a decorar sua cozinha — e de tanto observá-la, Francis quis saber de quem afinal era aquele rosto. Descobriu que se tratava da reprodução de um retrato pintado em 1885 pelo francês Jean-Jacques Henner (1829-1905). A mulher chamava-se Fabiola. Tinha vivido em Roma no século IV e, após um divórcio e a morte de seu segundo marido, renunciara à “vida de pecados” para se dedicar à filantropia e à fé cristã. Canonizada em 547, tornou-se padroeira dos viúvos, divorciados e dos casamentos infelizes.
De lá para cá, Alÿs virou um caçador de Fabiolas. Já são 426 retratos, de todas as épocas, garimpados por todo o mundo, a maioria feita por anônimos, artesãos, pintores de fim de semana. Há de tudo: quadros, miniaturas, bordados, composições feitas com arroz, feijão, sementes. “Fabiola estava dormindo silenciosamente no esquecimento quando tentei trazê-la de volta à vida”, sorri Alÿs. “Meu papel foi o de revelar o fenômeno discreto de sua reprodução espontânea ao longo de décadas, manifestar sua condição de ícone, embora ignorado pelo establishment.”
Mais do que um projeto artístico, Francis considera Fabiola uma investigação. “Trata-se de uma questão aberta sobre o que é a arte contemporânea”, reflete. A mostra, que chega este mês à Pinacoteca de São Paulo, já passou pela National Portrait Gallery, em Londres, pelo Hispanic Society of America, em Nova York, pelo Haus Zum Kirschgarten, em Basel, entre outros museus. “Todos, tradicionalmente, dedicados à arte clássica, histórica”, destaca Francis. “Assim, as cópias são exibidas em um circuito que valoriza a autoria, em que o retrato original poderia estar.” Só não está, vale dizer, pois o quadro original sumiu ainda no século dezenove. “É uma imagem praticamente desconhecida, que sobreviveu graças a essas reproduções.”
Como uma Marylin de Andy Warhol às avessas, a Fabiola de Alÿs é o contrário de um retrato impessoal, produto da cultura de massa. “À primeira vista, a coleção parece uma série”, comenta. “Mas se chegamos mais perto, se passamos um tempo maior na companhia dessas imagens, o caráter artesanal se impõe. As diferenças começam a surgir e aumentam à medida que continuamos a observá-las.” Alÿs acredita que a coleção põe em cena uma estética “livre de ambições artísticas ou comerciais”. “O que se vê é a tentativa de se apropriar de uma imagem”, diz. “As obras compartilham aspectos idênticos mas são únicas. Acredito que cada autor tenha projetado nelas sua ideia muito pessoal de mulher, que poderia ser uma mãe, irmã, amante.”
Fabiola foi ganhando corpo a partir das andanças de Alÿs por feiras, antiquários e mercados de pulgas (“buracos negros da memória coletiva”). A ideia de caminhar, andar pela cidade, sobretudo pelas ruas da Cidade do México, onde Francis mora desde 1989, ocupa lugar central em seu processo artístico — vide obras como The Leak, Duett e Paradox of Praxis I. “Andar a pé, em particular à deriva, sem destino — ainda mais se pensarmos na cultura da velocidade do nosso tempo — é um tipo de resistência”, defende Alÿs. “É também um ótimo método para descobrir e criar histórias. É preciso estar alerta ao que acontece ao redor e, ao mesmo tempo, imerso nos próprios pensamentos.” Como resultado dessas jornadas, a obsessão por uma jovem, com um véu vermelho, o olhar perdido. Segui-la, catalogar seus disfarces. Pode-se dizer que nos últimos vinte anos Alÿs vem escrevendo secretamente a biografia de uma imagem — e ainda não terminou: há lacunas, capítulos pela frente. Pergunto: dentre todas, qual a sua Fabiola favorita? Francis sorri. “Vou te dar uma resposta típica de um pastor de ovelhas: todas e nenhuma.”
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