segunda-feira, 31 de maio de 2010

ameixas, ame-as ou deixe-as

.
Texto para o Outlook do fim de semana. Sobre coisas deixadas por aí.
.
Na última terça-feira, duas novas estações foram inauguradas no metrô de São Paulo, Faria Lima e Paulista. Mas elas ainda não existem. Para que uma estação de metrô – rodoviária ou aeroporto – passe a existir de fato, é necessário que alguém, em algum momento, perca um objeto. Guarda-chuva esquecido no banco, título de eleitor que caiu no trilho, casaco na escada rolante. O “achados e perdidos” é a quintessência da estação de metrô e, cada vez mais, estilo de vida.

(Sobe vinheta)

Em abril, no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires, uma seção foi dedicada ao que a comunidade do cinema chama de “found footage” (gravações achadas), filmes feitos exclusivamente com material filmado por outros e encontrados por aí. Quando um turista esquece a câmera numa estação do metrô, crescem exponencialmente as chances que um “footage finder” (descobridor de gravação) encontre a fita e transforme tudo em filme experimental de quatro horas com a chamada "narrativa não-linear”.

Nos Estados Unidos, a moda chegou antes.

(Imagem de populares nas ruas de Michigan)

Desde 2001, os amigos Davy Rothbart e Jason Bitner editam a Found Magazine. A ideia da revista (toda feita de bilhetes extraviados, cartões postais achados no meio de livros, fotos perdidas, poesia em lenço de papel, post-it com dedicatória, lição de casa de algum sobrinho descuidado) surgiu quando, numa noite de neve, em Chicago, Davy encontrou um guardanapo no pára-brisa de seu carro. O recado dizia:

“Mario,

Eu te odeio.

Você disse que estaria no trabalho e por que diabos o seu carro está AQUI, nesse lugar? Você é um maldito MENTIROSO. Eu te odeio. Eu te odeio pra valer.

Amber.

Ps: Me liga mais tarde”

(Corta. Metrô de São Paulo)

As coisas perdidas podem ser de natureza diversa. Armação de óculos, clipes, receita médica, chave da casa. Um dia, o poeta Francis Ponge foi convidado por uma amiga a dar uma palestra numa faculdade. Tímido, sem saber muito bem por onde começar, achou que seria interessante dizer que “não estamos sozinhos aqui”. E então pediu um minuto de silêncio em homenagem às coisas da sala, “estas coisas cujo silêncio, uma vez mais, estamos roubando”: as paredes, as tábuas do assoalho, as chaves nos bolsos de cada um; “todos objetos que nos acompanharam, e que estão aqui conosco e devem se calar à força – talvez a contragosto –, e dos quais não tomamos conhecimento nunca”.

Certa vez, outro poeta, William Carlos Williams, deixou um recado para a esposa, certamente escrito com esferográfica em papel de pão:

“Só pra avisar

Comi as ameixas
que estavam
na geladeira

aquelas
que você provavelmente
guardou
para o café-da-manhã

Me desculpe
estavam ótimas
tão doces
e tão frias”

Até o fim desta reportagem, todavia, não houve registro de nenhum objeto ou bilhete esquecido nas novas estações do metrô paulistano.

(Sobe vinheta)
.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

assistência técnica marcel mauss

.
Marcel Mauss, em Sociologia e antropologia:

"Técnicas do tossir e do cuspir. Uma garotinha não sabia cuspir, o que agravava seus resfriados. Fui informado de que na aldeia de seu pai e particularmente na família de seu pai, no Berry [província da França], ninguém sabia cuspir. Ensinei-lhe a fazer isso. Dava-lhe uma moeda por cuspida. Como ela queria muito ter uma bicicleta, aprendeu a cuspir. Foi a primeira da família a saber cuspir."

"Técnicas da atividade: descida. Nada mais vertiginoso do que ver num declive um Kabyla com seus chinelos. Como ele consegue firmar-se, e sem perder os chinelos? Tentei fazer o mesmo, não compreendo."

"Técnicas de repouso. O repouso pode ser repouso completo ou simples pausa: deitado, sentado, agachado etc. (...) A maneira de sentar-se é fundamental. Podeis distinguir a humanidade de cócoras e a humanidade sentada. E, nesta última, os povos com bancos e os sem bancos e estrados, os povos com assentos e os sem assentos."

"Técnicas do sono. Há os povos com travesseiros e os sem travesseiros. Há o uso do cobertor. Povos que dormem cobertos e os que dormem não cobertos. Há, enfim, o sono em pé."
.

sábado, 15 de maio de 2010

casa nova

.


Girls, "Lust for life" (e no Don't look down, da Pitchfork. Oi, anos 90)
.

sábado, 8 de maio de 2010

nem parece banca

.
Texto do mês para o Outlook, do Fred Melo Paiva. Sobre figurinha.
.
Desde a última semana, quando o roubo de figurinhas da Copa (135 mil pacotes; 675 mil cromos) substituiu o assalto a banco, o dinheiro como conhecemos perdeu a graça. O beija-flor, a onça-pintada e o mico-leão-dourado (notas de cem, cinquenta e vinte reais, respectivamente) deram lugar a expressões faciais como a do norte-coreano Mun In-Guk (feliz) e do sul-africano Siphiwe Tshabalala (aflito), ao corte de cabelo de Charles Puyol e ao Ronaldinho Gaúcho.

Os cromos circulam, se desvalorizam, se entesouram; há inflação, há escassez. Na feira, o maço de brócolis já custa dois atletas de Honduras. O quilo do feijão, no supermercado, não sai por menos que um escudo australiano. As promoções anunciam televisores por dez cromos de meio-campistas de Gana. Há, no fim do mês, as contas a pagar: de luz (“Lionel Messi”), água (“mascote e estádio Nelson Mandela”), telefone, internet e tevê a cabo (“por mais cinco chilenos e duas brilhantes, você leva o pacote premium, senhor”). E muitos dependem do salário mínimo, que terá reajuste de Gilberto Silva, para desespero geral.

Se na Copa de 2006, meu amigo Antonio quase chorou sangue quando, num churrasco da família, um garoto se aproximou de seu escudo brilhante do Togo com as mãos sujas de sanduíche de linguiça vazando vinagrete, a situação agora ganha contornos ainda mais dramáticos. O sucesso das figurinhas da Copa (espera-se que até agosto 150 milhões de envelopes sejam vendidos) fez com que elas deixassem de ser apenas mania, para se tornarem a gloriosa moeda de um país. Basta olhar a sua volta – ou, claro, no próprio bolso.

Há, naturalmente, os obcecados pela usura. Sob elásticos equivalentes a caixas-fortes, senhas e contas na Suíça, se amontoam pilhas e pilhas de cromos autocolantes. Entre os usurários, existe aquele que se aproveita do poder (cinquenta Julio Cesar repetidos) para fazer amigos e sentir-se querido e admirado; o que não aceita que ninguém o ultrapasse na quantidade de escudos brilhantes; o que não se desfaz, em hipótese alguma, de sua coleção de Samuel Eto’o.

Do outro lado, no time dos que esbanjam, é conhecida a história de que James Joyce estabelecia uma conexão entre sua escrita e o desperdício de dinheiro (cromos). Famoso por distribuir generosas gorjetas (mesmo quando estava na pior), Joyce costumava dizer, frente às críticas da esposa, que o fluxo de dinheiro estava secretamente ligado a sua criatividade. E há a especulação, os empréstimos, o crédito, o lucro.

O jogo de bafo, prática outrora comum entre crianças, foi proibido, mas sobrevive na clandestinidade. Nas ruas em que piscam letreiros de peep show, segunda porta à esquerda, desce escada, fim do corredor, parede falsa: o jogo de bafo movimenta milhões de cromos. Isso sem falar nas operações de lavagem de figurinhas, figurinha na meia, na cueca.

Na nossa nova realidade monetária, a dos cromos autocolantes, é preciso investigar nossas relações com escudos reluzentes, David Beckham repetidos e a produtividade (geradora de figurinhas). Só assim poderemos nos posicionar diante de tal lógica econômica.
.