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Dando sequência às comemorações do Ano do Chibo no Brasil (que já teve
entrevistas e
trilha sonora), transcrevi alguns textos que o Eduardo Sterzi, o Manuel da Costa Pinto e o Julio Pimentel escreveram sobre o
livro siamês. Aliás, em breve, o
Verão entra em campo, nas oitavas-de-final da
Copa de Literatura 2009. É chute na canela e areia no olho!
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"No filme
Jeux interdits (no Brasil,
Brinquedo proibido), de René Clément, Paulette, uma menina de cinco anos que perdeu os pais num ataque aéreo nazista, é acolhida pela família do
pequeno camponês Michel, seis anos mais velho. Fora encontrada com um cachorro morto nos braços, e os dois novos amigos decidem enterrá-lo. Durante o restante do verão de 1940, época em que se passa o filme, constroem um cemitério para insetos e outros pequenos animais.
Foi do filme de Clément que Vanessa Barbara e Emilio Fraia extraíram a epígrafe do breve romance que escreveram juntos,
O verão do Chibo (Alfaguara). Na epígrafe -- que desloca o leitor, de súbito, para o interior de um universo em que a infância revela-se inquietamente impregnada pela consciência da finitude -- Paulette, confrontada com a proposta de construírem o cemitério de animais, pergunta a Michel o que é um cemitério, e o amigo lhe diz: "É onde põem os mortos para que fiquem juntos". Indagado, então, sobre por que os mortos são postos juntos, Michel responde: "Para que não se aborreçam".
A epígrafe, aqui, não é acessória, mas decisiva: propõe algo como a disposição (a
Stimmung) com que o livro deve ser abordado, projetando os acontecimentos nele narrados numa tela de amplitude e profundidade maiores do que aquela que o leitor previsivelmente lhes concederia. Afinal, a história que se conta é, à primeira vista, banal: um menino não nomeado, com idade próxima à de Paulette, e que faz as vezes do narrador, chega à casa de campo onde passará o verão e reencontra dois amigos de férias anteriores; no automóvel que o traz, o menino está no banco "do passageiro, de joelhos, com a cabeça para fora", quando avista os amigos que brincam no milharal vizinho à casa; no banco de trás, num isolamento que será sua distinção ao longo da narrativa, está o Chibo, seu irmão mais velho, doze anos recém-completados. De uma perspectiva infantil, o livro poderia ser resumido numa questão aparentemente ingênua: por que o irmão mais velho não quer mais brincar com os companheiros de outros verões? No entanto, a perspectiva da narração é bífida, e esta questão desdobra-se em interrogações mais graves: a voz que ouvimos no texto se tensiona todo o tempo, embora com sutileza, entre aquela da criança que conta a história enquanto ela acontece e a aquela outra do adulto que relembra a história com distanciamento; o vocabulário oscila permanentemente entre a imaginação desenfreada da criança, que transfigura as brincadeiras mais triviais em complexas tramas de espionagem e guerra, e a reflexidade dura do adulto. Daí que a morte de uma lagartixa, pelas mãos inocentemente cruéis de um dos amigos, possa suscitar no narrador uma reflexão que, ao menino, talvez estivesse vedada -- e que, iluminada pela epígrafe, como que sintetiza o romance: "Pensei no Chibo, em todo aquele silêncio do banco de trás, e que sim, alguém pode começar a morrer muito cedo (e levar dias, horas ou anos para não existir mais)".
A infância, a rigor, sempre acaba mal, pois a criança precisa morrer para renascer como adulto. A inteligência poética dos autores (que faz de
O verão do Chibo algo muito próximo de uma obra-prima, e ainda mais louvável se lembrarmos que se trata da estreia em livro de ambos) está em encarar de frente esta constatação, que é o tema secreto da maioria das narrativas sobre a infância. Aos olhos do narrador, todos, especialmente o Chibo, terminam aparecendo como fantasmas. O romance, em contraste, quer ser uma espécie de cemitério em que as experiências da infância são postas juntas, a salvo do aborrecimento da maturidade. O fim da infãncia pode ser tão "cruel" quanto o fim de um verão, "e fazemos questão de esquecer e de pensar que talvez fosse possível enganar o tempo, alongar o verão pra mais tarde e não dormir."
(Eduardo Sterzi,
Revista Cult)
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"(...)
O romance
O verão do Chibo foi saudado por conta da autoria a quatro mãos, mas não se percebem nele grandes alternâncias estilísticas. Sua qualidade é de outra ordem: reside na capacidade ímpar de incorporar o olhar de um garoto que transforma seus jogos com os amigos em aprendizado das relações afetivas e sociais.
O enredo se passa durante as férias do narrador e se desenrola quase exclusivamente num milharal em que os meninos da turma (incluindo Chibo, seu irmão mais velho) travam uma guerra de brincadeira. O intervalo de tempo (férias de verão) e o recorte geográfico (sítio interiorano) compõem um "correlato objetivo" da infância: materializam ficcionalmente o período de duração de fantasias que logo se chocam com uma realidade "adulta" pressentida apenas por seus efeitos -e que por isso permanece ameaçadora.
Aparece no livro aquilo que faz parte de um imaginário clássico da infância: a casa no tronco da árvore, a "zona proibida" e a transformação de tampas de garrafa e miolo de pão em utensílios de uma micro-sociedade com hierarquias e coordenadas próprias.
Sem cair numa linguagem infantilizada, Fraia e Barbara -que estarão na Flip- não se desviam do horizonte mental da criança que lida com o desaparecimento de Chibo ou com o surgimento de "homens barbudos de galochas" como capítulos de um enredo fantasioso.
Mas, ao longo do livro -que não deixa de ser um romance de formação em chave lúdica-, o narrador vai conectando esses seres alienígenas e acontecimentos misteriosos ao mundo de fora, aos lavradores que trabalham no milharal e ao fato de que "a gente passa pro outro lado".
(...)"
(Manuel da Costa Pinto,
Folha de S.Paulo)
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"
O verão do Chibo é um exercício de estilo. Seus dois autores – Vanessa Barbara e Emilio Fraia – buscam uma dicção fluida, um narrador que mantenha o ritmo nas descrições, que enxergue de fora e, ao mesmo tempo, atue e fale como um dos participantes dessa história de crianças que crescem e, ao crescerem, mudam de lugar, de condição, de mundo.
Às vezes, o leitor se sente em meio a uma quadrilha ou a uma brincadeira de roda, em que os pedaços da infância voltam e se combinam, dançam entre si, trocando de mãos e de pares, sem perder o modo fragmentário de quem lembra e sabe que, do passado, fica mais ausência do que resíduos, embora a memória às vezes nos persiga, idéia fixa, como mosca teimosa que insiste em pousar.
Chibo é o irmão mais velho e desaparecido do narrador, que percebe outros sumiços na ciranda do crescimento. Chibo é o advento desconfortável da maturidade. Não importa se o Chibo é real – para o narrador, para o leitor. Nem se suas aventuras, detalhadas na fala do mais moço, de fato aconteceram como são contadas. Chibo é tudo que se pode querer como irmão e modelo: forte, protetor, sabido; é aquele que possui a figurinha rara e lidera o universo em que vivem os personagens da história; conhece a zona proibida e ensina a respirar – literal e metaforicamente.
Por isso, sua ausência rodeia o narrador como a corda na garganta, o mar ao que se afoga. A perda é sentida no presente, que move a memória e preenche – com a sensação do hoje – os intervalos do passado lembrado. A saga quotidiana e infantil do narrador atravessa, assim, as referências que podem ajudá-lo a compreender o que o irmão foi e o que ele, pequeno-quase-grande, pode vir a ser. Para tanto, aparecem, aqui e ali, sinais do cinema e dos quadrinhos – de super-heróis a Calvin & Haroldo, de um mundo recheado de onomatopéias e de (nem sempre necessários) trocadilhos. Porque se é verdade que só crescemos quando esconjuramos os fantasmas da infância, é também inevitável que retomemos os verões com Chibo para chegarmos ao verão do Chibo – que, na verdade, é o verão sem Chibo: são os tempos-territórios que podem nos justificar, que podem ficar mesmo quando a infância se desfizer. Quando o novo lugar do Chibo e dos outros for compreendido, a ausência,essa ausência assimilada, ninguém a roubar mais do narrador.
Embora haja algum excesso no livro (principalmente nas citações e repetições), os autores conseguem manter o ritmo e a fluidez do relato e lidam bem com as variações de registro, passando do mosaico de cultura pop a um lirismo que não chega a ser declarado, mas tampouco é envergonhado. Certamente é o argumento sólido, associado ao assumido contorno cinematográfico da narrativa, que assegura a força do romance e mostra que Barbara e Fraia não se limitam – como tantos, hoje em dia – a fazer joguinhos de códigos para que os amigos decifrem."
(Julio Pimentel,
Paisagens da crítica)
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