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Conto que a
Vanessa e eu escrevemos juntos, em 2003.
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VibrafoneOlha, vamos esperar, juntos.
Perde a mão no meu cabelo e ouve o chiado, a vitrola e como se arrastam intermináveis os mistérios às quatro da manhã. Ainda mais quando se trata do sumiço de um vibrafone numa música que não chega nunca. O jeito é esperar, fecha os olhos, pode. Se você dormir, tudo bem, e não se preocupa quanto ao disco: vai estar aí, girando e girando depois mesmo. Ele não acaba, começa sempre de novo e de novo - num tempo infinito, todas as coisas do mundo (um número desmedido embora finito de coisas) alcançam o maior número de permutações possíveis, e se repetem milhares de vezes, como uma canção que nunca acaba ou então que não começa. Nunca.
Ai, o leite no fogo.
Da sala pra cozinha, no trajeto, a imagem da Bessie Smith ainda palpita na cabeça: essa mulher berra muito, deitada, de olhos fechados. O trombone pergunta, uma vez mais, e tem o peso da câmera lenta, faz "Empty Bed Blues" ser uma das mais bonitas do disco. Bessie responde, jogada num quarto sem cantos, perto da mesa do centro, com aquela voz de pato com laranja.
Uma sujeira, o fogão está um nojo, agora o cheiro de leite por toda casa, e o chão gelado. Preciso de meias de lã, grito na direção da sala. Quando escutei "Baby Doll" pela primeira vez, pensei na Bessie repetindo o refrão e olhando pra mim com cara de cachorrinho pidão; então eu desembrulhava um baby doll (de seda, cor-de-rosa) e jogava pra ela. Como se fosse parar de resmungar só porque ganhou um maldito baby doll - eu sei, é estúpido.
Segura a xícara com cuidado, tá quente. Eu sei, é estúpido. Mas penso nisso até hoje: é como aquelas fixações insólitas dos adesivos da bicicleta e da menina do pirulito. Nunca te falei?
Espera, olha: acho que a música do vibrafone está chegando. [...] Hm, não. Mas não deve demorar. Senta direito pra tomar o teu leite, enquanto isso vou te contando: as fixações, aquelas minúcias que grudam na memória durante décadas e décadas.
No circo, quando pequena, eu ficava encarando sempre um adesivo perto dos trailers, grudado num vidro da janela ao lado do banheiro feminino, onde estava escrito assim: "Não se finja de morto, pedale". E tinha o desenho de uma bicicleta, embaixo. Por mil demônios: você não sabe o quanto sou obcecada por esse adesivo até hoje. Escuta, será que é agora? Não: é só o trombone que voltou, digo, um frio por dentro.
Também não consigo desgrudar da vez - lá em 1986 - que passei me equilibrando numa faixa azul riscada com tinta no quintal de casa. Penso nisso e, depois, sempre, num trapézio, "Grooving High", canção 7, essa. Não, não é a do vibrafone. Olha, algumas escalas e notas e contratempos rolando e dando de cara com a gata que afia as unhas debaixo da mesa. A gata, gatinha, gatucha. Engole uma frase longa de trompete, engasga e provoca um tsunami no sofá.
Solo de bateria - espera, vamos esperar.
Uma vida que começasse assim, que comece sempre. Que seja toda hora interrompida, pá - e comece de novo. É livre quem não construiu nada. Ou quem jogou tudo fora, pro alto. Repete, repete gatinha, eu não quero as vidas anteriores, eu não quero, eu não.
Agora, a fixação mais desgraçada é a da "menina que chupava pirulito sem camisa". É obsessão pra uma vida toda. Era um grafite que ficava na esquina da Paulista com a Brigadeiro, lado Jardins, colado a uma barraquinha de cachorro-quente. Ora, alguém desenhou uma menina que chupava pirulito sem camisa e escreveu embaixo: "a menina que chupava pirulito sem camisa". Céus. Mas não existe mais, nem o grafite nem a barraquinha. Destruíram tudo.
Acho que é dessas coisas idiotas que a gente mais se lembra - o que é muito triste, porque seria mil vezes melhor recordar o rosto de alguém importante, ou uma viagem perfeita. Mas não: a gente lembra de um certo dia em que comeu um pudim e depois assistiu tevê, ou do dia em que foi andar de bicicleta na rua e não aconteceu absolutamente nada de especial. Todo mundo se lembra de como, num dia muito claro, puxou a bicicleta pra cima dos degraus, direitinho, e sentiu no rosto aquele sol absurdo.
O jeito é esperar. Porque o vibrafone sumiu pra valer. A gente precisa resolver isso. O nome da música é "Save It Pretty Mama". Li de novo o encarte. Estava lá: Lionel Hampton tateando o ar com o vibrafone em "Save It Pretty Mama". Escutei umas duzentas vezes. Juro, não estou brincando, sumiram com o vibrafone. Não está lá. Logo ele, o vibrafone. E logo o Lionel Hampton, pai do vibrafone - embora criasse também outros filhos, pois se atrevia ao piano. Desenvolveu a técnica de tocar com apenas dois dedos da mão direita; a mesma técnica, aliás patética, que ficaria famosa nos filmes dos Irmãos Marx, e que me influenciou no manuseio da máquina de escrever. Eu não sei quem é o culpado, não sei quem roubou o vibrafone do meu disco, mas tenho lá minhas suspeitas. Foi um homem vestido de palhaço. Pronto, falei. Pode rir - tempo para dar risada e fazer piadas sobre minha terrível situação. [...] Os palhaços me vigiam por toda parte, chegam sempre para me lembrar de que não estou sozinha. Sempre que olho de relance pra trás é como se visse um deles, como se mordessem a minha nuca.
Começou, acho, às vésperas do meu quinto aniversário, quando alguém inventou que eu precisava de uma festa com palhaço. Estava tão bem com o guaraná e as empadinhas, minha mania de apostar corrida, de jogar damas comigo mesma. Não queria um palhaço.
E eu que não fiz nada. Nunca incomodei ninguém. Nunca ameacei as forças cósmicas, o Feng Shui, a astrologia, os Illuminati ou as plantações de aspargos. No mês passado, só para citar um exemplo, estava virando a esquina de uma rua em Florianópolis e dei de cara com um palhaço. Você devia ficar orgulhoso: eu nem gritei, não fiz escândalo nem saí correndo. Se eu morresse naquela hora, e me encontrassem caída no asfalto com os braços em forma de L, estaria impressa nos meus olhos a face risonha do maldito palhaço. Juro, era desses de verdade, que colocam a cara bem no seu nariz e sorriem, com a maquiagem borrada. Lápis no olho. Corri. Corri.
E cheguei aqui, nesta música sem o vibrafone.
Liguei para a distribuidora, e me garantiram: o vibrafone está aí. Insisti, disse que a faixa "Save It Pretty Mama" do meu disco não tinha o maldito vibrafone. Que tinha escutado um milhão de vezes e que não, o vibrafone não existia. Foram categóricos: a gravação, de 1939, era famosa justamente por causa do vibrafone. Fica mais um pouco. Quero te mostrar que o vibrafone, que deveria estar, não está aí. Confia em mim. Eu sei, minhas olheiras. Os dentes, minhas unhas roídas, as capas dos discos, estou com soluços.
Não vai, eu digo, e tento por um segundo imitar um vibrafone. Meio ridícula, no corredor, e o vibrafone que não chega e não me salva.
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