sexta-feira, 21 de março de 2008
quarta-feira, 19 de março de 2008
quer ver? escuta
Esta semana foi lançado o Estranhos sinais de Saturno, terceiro volume das obras completas do Roberto Piva. O Piva é dono de uma poesia extremamente visual; é o poeta das imagens convulsivas, das aventuras, alucinações e dos sapatos de abóbora. Acho importante essa coisa da visualidade. Não só na poesia, na prosa também. O Conrad dizia que sua tarefa era fazer os leitores ouvirem, sentirem, mas principalmente verem. Quem escreve narrativas, ensinava Stevenson, tem que fazer chegar ao leitor imagens vivas: Crusoé retrocedendo diante de uma pegada, Aquiles gritando contra os troianos, Ulisses dobrando o arco. "Podemos esquecer de outras coisas: esqueceremos as palavras, por belas que sejam; esqueceremos o comentário do autor, ainda que tenha sido engenhoso e exato, mas essas cenas memoráveis, nada poderá borrá-las ou apagá-las", escreve o heróico Stevenson (que foi de Edimburgo a Londres, de Londres ao sul da França, da França a Califórnia, da Califórnia a uma ilha do Pacífico, com a tuberculose no seu encalço). "É esta, pois, a função plástica da literatura: dar corpo a um personagem, pensamento ou emoção em algum ato ou atitude que impressione de maneira notável o olho da mente."
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domingo, 16 de março de 2008
tom & jerry
Essa saiu hoje, a Vanessa e eu escrevemos juntos, pro Estadão.
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Borges e Bioy, ficção de cano duplo
Primeiro livro da parceria Borges-Bioy, Seis Problemas para Dom Isidro Parodi ganha nova edição em português
Em uma noite de 1936, na sala de jantar da fazenda dos Bioy, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares inventaram, juntos, uma família búlgara. A história integraria um folheto publicitário, A coalhada La Martona: Estudo dietético sobre os leites ácidos, encomendado por um tio de Casares. Dono da próspera companhia leiteira La Martona, ele prometera à dupla um pagamento vultoso por página. Bioy e Borges se animaram. Passaram a escrever um texto empolado e divertido sobre as vantagens do produto, com frases do tipo: “Quem tem saúde tem esperança, e quem tem esperança tem tudo — dizem os árabes, esses musculosos falcões do deserto, mas eles têm por trás da esperança algo que luta por sua saúde: a COALHADA”. No folheto, aprendemos que o iogurte aproxima o homem da imortalidade e que, na Bulgária, onde é um alimento apreciado, abundam os centenários. “O exemplo clássico é dos onze irmãos Petkof”, garantem os autores, “que chegaram todos aos cem anos, com exceção de María Petkof, morta aos 91.”
Bioy e Borges redigem capítulos sobre os méritos do iogurte entre os bretões, os franceses, os tártaros e os calmucos; inventam uma série de receitas para preparar bolos e pães de milho. Ao longo das páginas, vão amontoando dados de forma desconexa, afirmações vazias de conteúdo e tiradas repentinas, sem um contexto que as explique ou justifique. Para simular o discurso científico, incluem nomes e citações de supostas autoridades, além de frases bíblicas. O resultado é um texto pouquíssimo comercial com mostras de erudição e uma linguagem rebuscada, que, entre elogios ao leite balcânico e ponderações sobre os benefícios de bacilos e outros micróbios, revela o estilo inconfundível de H. Bustos Domecq: o pedantismo, a mistura de referências absurdas com citações verdadeiras, o humor irônico. Começava assim, em uma noite de 1936, com uma família búlgara numa sala de jantar, uma das mais intensas e importantes parcerias da história da literatura.
Pós-iogurte
Honorio Bustos Domecq, o “terceiro homem” que assinou grande parte das narrativas em colaboração de Bioy e Borges, nasce em 1941, cinco anos depois da experiência com o iogurte. Bustos era o sobrenome de um bisavô de Borges; Domecq, de um bisavô de Bioy. Segundo Borges, “Domecq não tardou a nos governar com mão de ferro e, para nossa grande alegria, e depois consternação, veio a ser muito diferente de nós, com seus próprios caprichos e chistes, sua maneira singular e muito elaborada de escrever”. Para os críticos Michel Lafon e Benoît Peeters, que juntos publicaram Nous est un autre, uma espécie de investigação sobre a escrita colaborativa, essa dominação estilística foi um dos segredos da obra comum. “A voz de Bustos Domecq era grandiloqüente e extravagante, e não a mera superposição da voz dos autores, mas sua transcendência, nascida de um elo misterioso que só existia no ato da colaboração”. Quatro livros foram escritos sob a alcunha do autor-personagem: Seis problemas para dom Isidro Parodi (1942), Duas fantasias memoráveis (1946), Crônicas de Bustos Domecq (1967) e Novos contos de Bustos Domecq (1977).
Esta parceria — que se desdobrou em traduções, organização de antologias, escrita de artigos, prefácios e roteiros de cinema — é a história de uma profunda amizade e, também, de intercâmbios e contaminações mútuas, em um diálogo literário vigoroso. Quando se conheceram, no início da década de 30, Bioy tinha dezessete anos e Borges, pouco mais de trinta. A partir de então, e por muito tempo, passaram a se encontrar com freqüência para discutir textos, inventar e aperfeiçoar personagens e tramas. Em seu ensaio autobiográfico, Borges escreve que um dos principais acontecimentos de sua vida foi o início desta relação. “Ao se opor a meu gosto pelo patético, pelo sentencioso e pelo barroco, Bioy fez-me sentir que a discrição e o comedimento são mais convenientes”, anota Borges. “Eu diria que Bioy foi me levando aos poucos ao classicismo.” Para Bioy, “toda colaboração com Borges equivalia a anos de trabalho”. O autor de A invenção de Morel diz que aprendia com o amigo sem nenhum pudor ou restrição: “Quando duas pessoas escrevem juntas, e não são vaidosas, o resultado é melhor do que quando trabalham separadas”.
Ecos de ecos
Em Seis problemas para dom Isidro Parodi, que a editora Globo lança este mês em uma edição que inclui Duas fantasias memoráveis, pode-se dizer que Borges e Bioy (ou seja, Bustos Domecq) criam relatos policiais clássicos, nada de narrativas realistas ou psicológicas — “mera verossimilhança sem invenção”. Bioy escrevia e ambos discutiam a trama, norteados por uma série de regras: oralidade triunfante, propostas alternadas, exigência mútua, direito permanente de veto, prioridade ao jogo e ao prazer, riso incontido. À semelhança da família búlgara que tomava iogurte, eles inventaram uma origem e uma bibliografia para Bustos Domecq, prefaciado por duas renomadas autoridades imaginárias: a professorinha Adelma Badoglio, que apresenta ao leitor o autor de Cidadão! (1915) e Falemos com mais propriedade (1932), e o egocêntrico Gervasio Montenegro, representante da Academia Argentina de Letras, que chega a menosprezar Bustos Domecq.
Nesse esquema de colaboração, segundo Lafon e Peeters, a trama policial servia de norte, de elemento tranqüilizante e estruturante; um roteiro prefixado governava o relato e, a partir dele, Bioy e Borges desfilavam seus personagens prolixos, que contavam tudo o que podiam sobre o caso em questão. Tudo é resolvido a partir de uma seqüência lógica de hipóteses e deduções. Isidro Parodi, “um quarentão, sentencioso, obeso, com a cabeça raspada e olhos singularmente sábios”, encarna o limite e a paródia da idéia clássica do detetive imóvel, representação pura da inteligência analítica. Nos Seis problemas, a estrutura é simples: os envolvidos no crime acorrem à cela de Parodi, preso por um crime que não cometeu, e se põem a relatar os acontecimentos em um discurso muitas vezes delirante. Essa verborragia esconde os indícios necessários para a resolução do caso, e não é raro que a reescritura, a paródia, o plágio, a adaptação e a tradução estejam entre os motivos ocultos do crime. Nada mais conveniente em uma escrita em dupla, observa Lafon, do que falar de si mesma.
As obras individuais de Bioy e Borges também estão repletas de temas que tangenciam e fazem ecoar a idéia do duo literário. Relatos como “O outro” e “Tema do traidor e do herói” (Borges) ou “A trama celeste” e A invenção de Morel (Casares) amplificam as questões do “duplo” e das “realidades paralelas”.
No epílogo de suas Obras completas em colaboração, depois de citar The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Stevenson, em que o dr. Jekyll se transforma em duas pessoas, Borges diz: “A arte da colaboração literária é a de executar o milagre inverso: fazer com que dois sejam um”. Um outro texto, “Pierre Menard”, a história do homem que reescreveu de maneira idêntica, linha por linha, o Quixote, de Cervantes, encabeça o ataque à idéia de criação literária original, considerada por Borges um dos mais graves enganos, já que em cada texto estão presentes autores e textos anteriores. A reescritura, a paródia e o plágio são parte das estratégias de Borges para dissolver a idéia de autoria.
O crítico Daniel Balderston escreve que o argentino formulou em várias ocasiões sua idéia de que a criação literária é em grande parte algo impessoal, por ser cada escritor arquétipo de todos os escritores. “Talvez, para Borges, a colaboração seja uma forma de superar o ‘eu’ e a idéia ególatra de que uma obra está possuída por seu autor”, argumenta Balderston. “Para ele, somos todo o passado, somos nosso sangue, somos a gente que vimos morrer, somos os livros, somos gratamente os outros.”
Tom e Jerry do thriller
É muito freqüente, no entanto, que os duos literários sejam ignorados ou menosprezados pela crítica, que costuma reduzi-los a circunstâncias determinadas: anos de aprendizagem, exercícios de estilo, gêneros menores ou tarefas sob encomenda. Em muitas entrevistas, Bioy e Borges chegaram a considerar “menores” as obras de Domecq. Mas a questão é ambígua. Em seu ensaio autobiográfico, Borges afirma que alguns textos de Bustos Domecq são melhores do que tudo o que ele publicou sob o próprio nome e quase tão bons quanto aquilo que Bioy escreveu sozinho. Sobre The Wrecker, livro que Stevenson dividiu com seu genro, Lloyd Osbourne, Borges diz: “Esta novela é a melhor de Stevenson, mas permaneceu ignorada porque o autor não a escreveu sozinho. Ninguém se aventura a elogiar páginas de duvidosa paternidade”.
Para Lafon e Peeters, os críticos costumam nivelar as obras em colaboração, atribuindo a verve literária às piruetas de dois acrobatas, ao número de dois animadores de auditório. Bioy e Borges suscitam, assim, as mesmas comparações que outros duos literários: são o Tom e Jerry do thriller, o Bouvard e Pécuchet do suspense, o Batman e Robin do crime, quando não o Fred Astaire e Ginger Rogers do romance. Como se a incongruência dessas comparações acabasse por alimentar uma condescendência divertida e dispensasse a análise verdadeira dos textos.
É meu!, é meu!
Os casos de parceria na literatura, porém, obedecem aos mais diversos princípios. Os inseparáveis irmãos Goncourt, por exemplo, escreviam um diário juntos e encarnaram o máximo da fusão literária, estética, afetiva e psicológica, muito além da escrita em dupla. Jules e Edmond inclusive dividiam as amantes. Já Alexandre Dumas e Auguste Maquet foram parceiros durante sete anos e produziram, juntos, dezessete romances. Em geral, Maquet dava o primeiro passo, pois tinha a habilidade de construir os enredos e possuía um conhecimento de fundo que utilizava em todas as aventuras. Dumas lia o original e se servia do texto como um rascunho. Ele reescrevia, acrescentando mil detalhes que davam vida ao romance, refazia os diálogos (nos quais era mestre), polia o fim dos capítulos e aumentava o texto, para satisfazer às exigências de um folhetim que devia durar dois meses e prender o interesse dos leitores. Às vezes pedia a Maquet que “fizesse” tal e tal episódio, e usava o verbo “fazer” em vez de “escrever”, como se fosse uma tarefa mecânica. Dumas também sugeria intrigas e defendia a sua própria visão da história. Às vezes introduzia novos personagens, como o criado Grimaud, taciturno, que só respondia em monossílabos — artifício muito engenhoso, já que os jornais da época pagavam por linha. Não haveria nenhum problema na colaboração, se Dumas não assinasse sozinho todos os livros. Os três mosqueteiros, O conde de Monte Cristo e A rainha Margot foram alguns dos romances dessa parceria.
Outro tipo de colaboração foi encarnado por Jules Verne e seu editor, Jules Hetzel. Verne era um autor inexperiente e fazia um papel quase submisso diante das exigências do chefe. A cada livro, retrabalhava intensamente sobre as críticas até que Hetzel ficasse satisfeito. O escritor chegava a implorar pela atenção do editor, dizendo que não poderia terminar o livro sem a presença dele. Também Colette e seu marido Willy mantiveram uma parceria literária. Durante dez anos, ela escreveu e ele assinou. Willy mantinha a esposa no anonimato e embolsava seus direitos autorais pela série da personagem Claudine, que fez muito sucesso na época. Mais bem-sucedida foi a parceria conjugal entre Júlio Cortázar e Carol Dunlop, que escreveram juntos Os autonautas da cosmopista. O livro, um relato de uma viagem de carro pela auto-estrada Paris–Marselha, é uma mistura de fragmentos de manuais, diálogos, histórias, desenhos e fotografias, sem distinção de autoria. Para eles, a colaboração era uma maneira de lutar contra a morte e de celebrar o amor, a alegria compartilhada e a cumplicidade do instante. Mesmo Gustave Flaubert, o anti-colaborador por excelência, chegou a escrever uma peça com Louis Bouilhet e o conde d'Osmoy, Le château des coeurs, e um livro (nunca publicado) em parceria com o amigo Maxime Du Camp. Era o diário de uma viagem de três meses ao oeste da França, que inicialmente seria escrito ao longo da jornada — o que não deu certo, pois estamos falando do preciosista Flaubert. Ambos optaram por um formato em doze capítulos: a Flaubert, cabiam os ímpares e a Du Camp, os pares. O curioso é que algumas das passagens mais flaubertianas são da autoria de Du Camp. Misturas assim também aconteciam com Borges e Bioy. “Quando alguém quer saber se essa ou aquela brincadeira ou epíteto saiu de meu lado da mesa ou do lado de Bioy, sinceramente não sei dizer”, confessa Borges. “Toda colaboração é misteriosa.”
A parceria entre Borges e Bioy é, sobretudo, uma história de amizade. Na página que abre Ficções, dividem a cena um espelho e Bioy Casares. O conto é “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” e nele Borges escreve: “Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. (...) Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”. E assim descobrem, juntos, que os espelhos têm algo de monstruoso.
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quarta-feira, 5 de março de 2008
the dude is not in
A Lebowski Fest aconteceu há alguns meses, em um boliche no bairro de Acton, pros lados de Hammersmith, West London. Fui até lá e escrevi esse texto sobre a festa. Foi publicado na piauí deste mês.
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Hey, Dude
Em Londres, mulher-tapete celebra o Cara
Não sobrou nenhum pino. Enquanto a gerente de vendas Lisa Jones, 25 anos, vibra e abraça as amigas, Will Russel, 31, aperta o botão da máquina e, sem remorso, invalida o strike. "Pisou na marca." "Mas, mas...", Lisa tenta se justificar e também dizer que— "Pisou na marca", com Russel não tem conversa, e ele começa a ficar nervoso: "isso não é o Vietnã, dear! Isso é boliche, há certas regras!". O pessoal em volta ri. A frase é do filme favorito de Russel e das 500 pessoas que lotam as 28 pistas do Tenpin Bowling, em Acton, Londres: O Grande Lebowski, dos irmãos Ethan e Joel Coen.
Em 2002, o americano Will Russel e um amigo, Scott Shuffitt, 34, tiveram a idéia de criar uma festa para celebrar a comédia noir dos irmãos Coen. A primeira edição foi realizada na cidade dos dois, Louisville, Kentucky, num boliche cujos donos eram batistas. Segundo Russel, no local não era permitido beber ou blasfemar, "o que, convenhamos, atrapalhava. Afinal, no filme os personagens falam fuck (ou alguma variação) exatamente 251 vezes".
Ainda assim, apesar da compostura evangélica, os 35 amigos convidados para a maratona — que incluía a exibição do filme, concurso de fantasia e competição de perguntas-e-respostas inspirados no Grande Lebowski — se multiplicaram, e a festa acabou atraindo 150 lebowskianos ortodoxos. Um ano depois, a revista americana Spin indicava o festival como "um dos dezenove eventos mais legais do verão". A terceira festa, em junho de 2004, juntou mais de 4 mil Achievers — ou Conquistadores, Empreendedores —, como se autodenominam os fãs, numa das muitas piadas com que se divertem. Reuniões já foram organizadas em Seattle, Los Angeles, Nova York e Las Vegas, e neste mês, em Chicago, a festa comemora os dez anos de lançamento do filme.
O Grande Lebowski chegou aos cinemas na primavera de 1998 e foi um fracasso. Crítica e (algum) público se perguntavam que raio de história policial à la Raymond Chandler era aquela — são os próprios Coen quem reivindicam a filiação. Em vez de um detetive, quem seguia as pistas e tentava desvendar o mistério da trama era um hippie de meia-idade, desempregado, pacifista, ex-ativista político, jogador de boliche, fã de roupões de banho, ruídos de baleia e da banda californiano-ecológico-antiguerra-do-Vietnã Creedence Clearwater Revival. Seu nome era Jeffrey Lebowski, ou melhor, The Dude, como preferia ser chamado: "O Cara".
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Interpretado por Jeff Bridges, Dude é um sujeito verão que passa boa parte do filme metido num roupão de banho, fumando maconha e bebendo White Russian, um drinque para destemidos à base de licor de café, leite e vodca. A paz do Cara é desafiada quando o confundem com outro Jeffrey Lebowski, um velho milionário cuja voluptuosa namorada foi seqüestrada porque deve dinheiro a um magnata da indústria pornô de Los Angeles. Para alegria de Russel e Shuffitt, o filme traz também uma gangue de alemães niilistas, uma marmota selvagem e aforismos sem juízo ditos por um caubói de bigode e voz solene. Verdades eternas do tipo "Um dia agüentamos a barra; no outro, a barra cai em cima da gente".
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